Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

A Juíza (2018): a trajetória da jurista mais badass da história dos EUA

A carreira e o impacto de uma das mais importantes juristas contra a desigualdade são temas deste brilhante documentário sobre um inesperado ícone da cultura pop.

Se existe pelo menos um servidor público que merece o apelido de “mito”, essa pessoa é Ruth Bader Ginsberg. E o documentário “A Juíza” justifica a fama da diligente personalidade norte-americana. Ao dedicar uma carreira para lutar contra a discriminação de gênero, e fazendo isso com impressionante resiliência e estratégia, Ruth foi responsável por momentos decisivos para a evolução das leis dos EUA que, pela precedência e poder de influência do país, tiveram impactos progressistas em todo o mundo. A obra de Julie Cohen e Betsy West propõe fundamentar a “notoriedade” da jurista, comparada ao rapper Notorious B.I.G. (sendo Ruth a “Notorious R.B.G.”) pela “lacração” das suas potentes declarações dissidentes, especialmente durante a época em que ela foi a única mulher na Suprema Corte americana.

A obra relata a biografia e a carreira de Ginsberg, desde seu nascimento numa família judia nova-iorquina até seus 85 anos ainda em exercício na Corte, em meio a homenagens por seus feitos e com energia suficiente para aguentar rotinas de musculação. As memórias de infância de Ruth ilustram a rigidez de sua educação como semente para sua incansável dedicação. Seus dias de adolescente são lembrados por amigas da época e registrados por valores sobre como ser independente, mesmo com um “príncipe encantado” a seu lado, e como ser uma “dama”, sem expressar emoções supostamente inúteis como a raiva. Para a juíza, gritar com as pessoas tem o poder indesejado de afastá-las, e tal crença está muito bem refletida em seu comportamento perante as causas mais complexas e desafiadoras.

Sobre a desigualdade entre homens e mulheres, Ruth sentiu as dores das injustiças e dificuldades durante sua formação profissional. Como uma das poucas mulheres a se formar em Direito nos anos 1950, determinada, a então advogada dividia a carreira com o lar, dando atenção a uma filha pequena e ao marido Martin, que na época tratava um câncer. Já professora, Ruth ganhava menos que os colegas e, para combater problemas como esse, ela direcionou seu suor para especialidades em direitos femininos e discriminação sexual. “A Juíza” atribui o sucesso do trabalho de Ginsberg às escolhas estratégicas dos casos que ela optou defender e à sua abordagem cautelosa, pensando em pequenas mudanças sem perder de vista o objetivo maior de igualdade a longo prazo, perante uma Suprema Corte formada exclusivamente por homens nos anos 70. A importância das vitórias de Ruth é sustentada em entrevistas com importantes figuras da luta feminista como Gloria Steinem e Nina Totemberg.

O documentário ainda retrata a ascensão de Ruth ao Senado na década de 80 e, finalmente, nomeada pelo então presidente Bill Clinton à Suprema Corte dos EUA em 1993. Como a segunda mulher da história a ocupar o honorífico cargo, ela assume que sua trajetória só foi possível por ter sido num país como os Estados Unidos. Carreira profissional à parte, as pinceladas de intimidade manifestadas nas entrevistas de pessoas próximas e nas declarações da própria juíza são os detalhes que desenham a humanidade à frente da personagem central. É palpável o sentimento de Ruth sobre o fato de que se falhasse no combate à desigualdade não seria somente uma derrota pessoal, mas de todas as mulheres que ela representa.

Apesar de ser uma mulher reservada e de poucas palavras, seu lado descontraído atravessa a tela em contraste com seu marido brincalhão, por depoimentos da família e em relatos divertidos como sua paixão por ópera. Num momento particularmente emocionante, a juíza se diverte assistindo à sua própria paródia por Kate McKinnon no programa de TV “Saturday Night Live”, tamanho é seu impacto cultural. Considerada um ícone pop tal qual uma rock star, Ruth é dita como a figura mais próxima de uma super-heroína na vida real, e essa ideia é corroborada por Hollywood – sua imagem está em filmes como “Uma Aventura Lego 2” e em “Deadpool 2”, neste último ela é uma das candidatas a fazer parte do grupo de super-heróis X-Force. Ainda no cinema, sua história inspirou o filme biográfico “Suprema”, de 2018 e com Felicity Jones no papel de Ginsberg.

“A Juíza” não deixa dúvidas sobre como Ruth soube aproveitar os momentos históricos, seu talento e sua incrível devoção ao Direito para mudar a sociedade que vivemos, um passo de cada vez. Suas marcantes declarações públicas ajudaram a fortalecer a imagem de feroz defensora das mulheres e a propagar valores essenciais e importantes, especialmente na era Trump de conservadorismo nos Estados Unidos. Seu pequeno tamanho só destaca sua gigante força e seu prodigioso legado, que graças a esse documentário têm o potencial para inspirar espectadores por todo o mundo.

William Sousa
@williamsousa

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