Um deleite nada meloso e muito verdadeiro para a época do Natal e para todos os demais dias do ano.
Calvin Clifford Baxter (Jack Lemmon, de “Quanto Mais Quente Melhor”) é um funcionário da Consolidated Life, uma das maiores seguradoras dos EUA, segundo ele mesmo narra. Do 19º andar, na mesa 861, ele é o único a ficar uma ou duas horas a mais. Porém, engana-se quem pensa que o tempo extra no escritório é fruto de uma profunda dedicação ao trabalho. É que seu apartamento serve como motel para que seus superiores possam se encontrar com as respectivas amantes, deixando Baxter de fora de sua própria residência. Está formada a base para “Se Meu Apartamento Falasse”, comédia agridoce e repleta de crítica social de Billy Wilder (“Crepúsculo dos Deuses”).
A localização do apartamento de Baxter é privilegiada. Ele fica próximo ao Central Park em Nova York, no bairro Upper West Side. Tem até um bom tamanho para servir de moradia a solteiros, e é abastecido com bebidas e aperitivos para os casais adúlteros. Inicialmente, o público não sabe como um simples funcionário da Consolidated Life se meteu nessa situação. Mas tudo indica que a rotina se repete com alguma frequência e interessa a todos os envolvidos. Para o quarteto de gerentes da seguradora, o apartamento é um fuga de suas vidas ao lado das esposas. E para Baxter, é o seu atalho para uma promoção.
A história se complica ainda mais quando o diretor de recursos humanos, Jeff D. Sheldrake (Fred MacMurray, de “Pacto de Sangue”) descobre o esquema e decide tirar proveito com a sua própria acompanhante. E, em meio a toda essa infidelidade, Baxter demonstra nutrir sentimentos pela ascensorista Fran Kubelik (Shirley MacLaine, de “Laços de Ternura”), que chama a atenção de todos pela sua simpatia e beleza.
O cineasta Billy Wilder também assina o roteiro ao lado de I.A.L. Diamond (“Quanto Mais Quente Melhor”), e é exatamente nos diálogos que a história se ancora. O que começa como uma comédia ácida e com crítica social, passa a ser um drama e se desenvolve para um terceiro gênero no ato final – que estragaria a experiência expor -, mas sem nunca deixar de lado o humor como seu pilar. A dupla de roteiristas consegue extrair graça de praticamente tudo. Há o filme na televisão que jamais começa, sendo frequentemente interrompido por propagandas (em uma quase premonição do que futuro reservaria), e a divertidíssima incredulidade de que Baxter, um perfeito exemplo do homem comum, seria capaz de ter encontros amoroso todas as noites com diferentes mulheres.
Parte do poder dessa história reside em mostrar muito sem, necessariamente, dizer muito. Frases absolutamente banais carregam uma carga de sentimentos e intenções muito maiores do que aparentam, e esse charme é muito difícil de alcançar. Encoberto por humor, Wilder caçoa do corporativismo dos EUA dos anos 1950, que cobra serviço de todos, mas beneficia poucos e com segundas intenções. “Se Meu Apartamento Falasse” é um filme que consegue fugir da dicotomia dos mocinhos e vilões. Todos os personagens carregam falhas de caráter bem claras e nem por isso deixam de ser humanos. Muito pelo contrário, a complexidade deles e de suas várias facetas tornam a trama muito mais crível.
Apesar de não ser uma história de Natal propriamente dita, é durante esta época do ano que ocorrem as principais revelações do filme. A seriedade do 19º andar dá lugar a uma grande festa com bebidas, que tira a inibição do cotidiano e revela um pouco mais de quem aquelas pessoas do escritório de seguros realmente são. É em frente a uma árvore decorada com pisca-piscas que os ânimos se afloram, e são os presentes natalinos que evidenciam a visão que os personagens têm de seus colegas, subalternos e amantes.
Se há uma coisa em comum entre os grandes cineastas, certamente é serem grandes fãs de cinema. O próprio Billy Wilder mesmo é um ótimo exemplo disso. O diretor tinha uma placa em sua mesa com as palavras “como Lubitsch faria isso?”, em referência ao diretor do clássico “Ladrão de Alcova”, Ernst Lubitsch. E em “Se Meu Apartamento Falasse”, ele usa o conceito de outro filme, “Desencanto”, de David Lean, para mostrar um novo ponto de vista que nenhuma obra havia abordado. Wilder criou, com este seu clássico de 1960, uma obra que fala também sobre as comemorações de fim de ano, e que ressoa todos os outros dias.