Apostando em uma mescla de suspense pós-apocalíptico com drama materno, o filme acaba pendendo para o lado mais trivial e desperdiça uma ótima oportunidade de se destacar pelo original.
Um pequeno barco está nas margens de um rio violento, e dentro dele vemos uma mãe dizendo a duas crianças que a jornada prestes a começar será dolorosa, mas tudo vai dar certo no final. O início de “Bird Box”, disponível na Netflix, é um convite ao espectador para rumar junto nessa travessia em busca da sobrevivência, mas com certeza não é a melhor maneira de mostrar sobre o que, de fato, o filme trata.
Vemos de cara uma mãe preocupada com o bem-estar de suas crianças, algo muito usual em filmes pós-apocalípticos. Porém, assim que essa sequência termina, voltamos ao passado para (tentar) entender o que aconteceu com o mundo e, principalmente, conhecer nossa personagem principal. Malorie (Sandra Bullock, “Oito Mulheres e um Segredo”) está grávida e é acompanhada por sua irmã Jessica (Sarah Paulson, “Vidro”) para fazer um exame de rotina. Os diálogos envolvendo o trajeto até o hospital e o prosseguimento da examinação nos mostram uma protagonista fria e indiferente, que demonstra até mesmo temer não amar o filho que se forma em seu ventre. Descobrimos logo que ela abraçou completamente a solidão, mesmo com a insistência da irmã em “iluminar” um pouco mais a sua vida. Isso contrasta imediatamente com a figura materna protetora que vimos na cena de abertura, deixando claro desde o início que a obra trata da jornada de Malorie para se permitir experimentar o amor de mãe.
É também no hospital que vemos os efeitos do caos que assola o planeta. Uma grande quantidade de pessoas entra em um surto suicida sem nenhuma explicação imediata, e o que resta para os que ainda estão sãos é tentar se abrigar e torcer para não serem afetados por essa “doença”. Malorie, sozinha e caída na rua, é ajudada por Lydia (Rebecca Pidgeon, “A Série Divergente: Convergente”), esposa de Douglas (John Malkovich, “22 Milhas”). A boa ação acaba resultando na morte de Lydia, gerando uma tensão imediata entre o agora viúvo e a grávida que se ampara em sua casa. É nesse recinto, contando também com outros abrigados, que a trama – e os problemas – começam a se desenvolver de fato.
Como é possível perceber, a narrativa de “Bird Box” se divide em duas subtramas que se alternam. A primeira, que toma mais tempo de tela, é a da casa de Douglas. Nesse ambiente, é possível trabalhar temáticas como o confinamento de pessoas muito diferentes, o desespero para sair dali, necessidades como comida, álcool, sexo etc, além de mostrar as primeiras descobertas sobre o que pode estar causando toda essa catástrofe no mundo. Nesse ponto, já estamos cientes que o simples fato de olhar para a “coisa” causa o ímpeto pelo suicídio. Isso faz com que bons momentos sejam apresentados, como a cena do carro com todas as entradas de luz vedadas, mostrando de forma inteligente (através dos sensores de proximidade) o que não se pode ver. Mas vários furos também incomodam, como a demora monumental para o dono da casa revelar que existem câmeras de segurança na propriedade (???); e a fuga repentina de um casal improvável, que havia acabado de se formar e já desaparece, servindo apenas de muleta para um acontecimento específico, e sequer tendo um final mostrado em tela.
Do outro lado do fio narrativo escrito por Eric Heisserer (“A Chegada”), temos, claro, a travessia de Malorie e das duas crianças pelo rio truculento. A existência por si só dessa subtrama já deixa claro que todos os demais personagens mostrados no passado tiveram um fim, substituindo a possibilidade de um bom suspense por apenas uma curiosidade sobre como cada um terminou. Outro incômodo são as transições para esse núcleo, que além de sempre mostrarem há quanto tempo o grupo está na viagem, acabam virando uma sequência de pequenos episódios, pois, afinal, não faria sentido mostrar apenas um trajeto se não houvessem obstáculos no caminho. Sem falar também na explicação extremamente didática sobre a caixa de pássaros que dá título ao filme. Ainda assim, são nesses momentos que o “suspense” do filme realmente desponta, porque não há como prever o que pode acontecer àquela família. A cena que Malorie é forçada a deixar o barco “estacionado” enquanto busca por suprimentos, deixando Menino e Menina – sim, estes são os nomes das crianças – sozinhos, causa uma ansiedade inacreditável.
Mas apesar de render sequências excelentes – a diretora Susanne Bier (“Em Um Mundo Melhor”) apresenta um clímax de tensão poderosíssimo no segundo ato -, é no drama que “Bird Box” finca suas raízes. Mesmo parecendo por vezes superficial, a força sempre responsável pelo avanço da história é a maternidade de Malorie. Tanto que a protagonista é a única que se pode dizer realmente bem desenvolvida em toda a produção. Papéis como os de Olympia (Danielle Macdonald, “Patti Cake$”), outra mãe de primeira viagem, e Tom (Trevante Rhodes, “O Predador ”), figura paterna cobrindo um vazio presente na vida de Malorie, são desenvolvidos apenas com o objetivo de construir o amor materno da personagem, interpretada de forma magistral por Bullock. Os nomes das crianças, Menino e Menina, já mostram de cara a falta de apego da mãe pelos filhos, que vem ser melhor alicerçado somente um tempo depois do nascimento deles. A simples existência da subtrama do rio é uma clara metáfora ao ato de ser mãe. Imagine alguém sentindo medo e apreensão 100% do tempo, lutando pela sobrevivência da família, e a qualquer momento um filho pode cair? São pontos que, se abraçados com mais intensidade pelo longa, certamente renderiam algo intenso e profundo. Uma pena que a relação de Malorie e os filhos seja desenvolvida tão tardiamente, faltando tempo para aproveitar uma narrativa tão mais relevante do que apenas angústias e tensões pelo desconhecido.
Revelar mais da narrativa seria um desserviço ao leitor e espectador, afinal, (infelizmente) a obra acaba tendendo mais ao suspense do que à maternidade em meio à destruição. Notem que pouco foi falado aqui sobre a “coisa” que causou toda a hecatombe mundial ou sobre as cenas envolvendo os olhos dos personagens vendados, porque, assim como o ótimo livro “Caixa de Pássaros” em que se baseia “Bird Box”, o mistério quanto a isso deve ser mantido e apreciado. Porém, assim como Malorie inibe os sonhos dos filhos, pois seria uma distração ao que de fato importa – sobreviver -, o sonho de ver o drama familiar pós-apocalíptico bem desenvolvido no longa acaba sendo frustrado. No final, o que tiramos desta caixa é mais um filme que apresenta valor de produção e qualidades interessantes, porém acaba decepcionando pela grande expectativa gerada e pelas oportunidades desperdiçadas.