O filme sabe como explorar os clichês a seu favor para construir uma narrativa envolvente. Pode não ser nem o melhor filme natalino, mas consegue atingir sua proposta de diversão com pitadas de novidade.
Filmes de Natal são lançados a todo ano com algumas convenções fundamentais para o subgênero. Em especial, a importância do espírito natalino e a jornada de personagens céticos para acreditar no que a festividade representa. Ainda que essa estrutura se repita muitas vezes, os clichês não são, necessariamente, um defeito merecedor de muitas críticas. Saber trabalhá-los ou atualizá-los, de alguma maneira, pode proporcionar um bom e simples entretenimento. É o que acontece com “Crônicas de Natal“, produção da Netflix dirigida por Clay Kaytis (“Angry Birds: O Filme”).
A abertura do longa mostra a relação da família Pierce com o Natal ao longo do tempo a partir das filmagens caseiras feitas pelo pai Doug (Oliver Hudson, da série “Splitting up Together”): a interação do casal Doug e Claire (Kimberly Williams-Paisley, de “O Pai da Noiva”) com o filho pequeno Teddy, o nascimento da filha Kate, as brincadeiras entre todos e as brigas entre os irmãos conforme envelhecem. Quando as filmagens chegam ao Natal de 2018, esse recurso demonstra suas duas funções narrativas: apresentar os personagens e a mudança de suas dinâmicas, assim como informar a morte do pai e suas consequências para a família e para as comemorações.
Em 2018, as relações conturbadas entre Teddy (Judah Lewis, de “A Babá”) e Kate (Darby Camp, de “Benji”), típicas da diferença de idade, ficam evidentes pelo trabalho dos dois atores. Teddy é um adolescente que não lida bem com a morte do pai, perdeu o encanto pelo Natal, se envolve com amizades questionáveis e provoca sua irmã o tempo todo; já Kate é uma criança ainda contagiada pela magia da época do ano, se esforça para manter as tradições da festividade e tenta ser muito próxima do irmão, apesar dos desentendimentos constantes. A relação entre eles pode não ser perfeita nem harmoniosa, porém o amor, o carinho e a preocupação recíprocos são perceptíveis – por exemplo, Kate não diz à mãe que Teddy roubou um carro com os amigos, nem ele termina a frase que diria à irmã que Papai Noel não existe.
É no dia 24 de dezembro que diversos acontecimentos inesperados transformarão a família Pierce. Teddy e Kate estão sozinhos em casa e decidem flagrar o momento exato da chegada do Papai Noel. O plano deles falha e, acidentalmente, danificam o trenó. A partir daí, os dois precisam ajudar o bom velhinho a entregar todos os presentes e a salvar o Natal. É interessante perceber como as características tradicionais dessa festa são colocadas em nosso tempo presente e relacionadas a traços marcantes da atualidade – são feitas referências orgânicas na narrativa ao Uber, às fake news e à série “Stranger Things”. Tudo isso acaba por estruturar a história dentro da perspectiva do peixe fora d’água, ao colocar o Papai Noel percorrendo grandes cidades norte-americanas e interagindo com cidadãos comuns.
Muitas atualizações também são feitas na figura do Papai Noel (Kurt Russell, de “Os Oito Odiados”), o ponto alto de “Crônicas de Natal” graças ao excelente timing cômico do ator. O personagem não corresponde à imagem clássica do São Nicolau tão difundida pela cultura pop: não é gordo, não fala o famoso “ho ho ho” e gosta de ser chamado de São Nick; não é exatamente a definição de “bom velhinho”, pois pratica suas “travessuras” ou ações radicais surpreendentes, como roubar carros, se envolver em perseguições automobilísticas, ser preso e cantar blues com os prisioneiros. Sua figura também é utilizada de modo a combinar a magia do Natal com apetrechos tecnológicos, ao conseguir voar e se transformar em fagulhas vermelhas para atravessar os tetos e as chaminés das casas, bem como usar um relógio para medir o espírito natalino do mundo.
Em termos visuais, “Crônicas de Natal” também tem suas qualidades. O figurino do bom velhinho é atualizado para um estilo mais prático, sem o volume na região da barriga. O design de produção do Polo Norte é belo esteticamente e ainda aproxima a fantasia da ocasião, como as mensagens das crianças pedindo presentes e os duendes os fabricando, a um cenário tecnológico próprio de nosso tempo (um exemplo é a modernização dos pedidos de presentes, não somente feitos por cartas, mas também por vídeos transmitidos para o Papai Noel em várias telas). E os efeitos visuais, baseados em um eficiente CGI, criam criaturas lúdicas, fantasiosas e com grande expressividade, como se pode notar, principalmente, na diversidade de duendes.
No decorrer de sua projeção, o filme trabalha bem o clichê do espírito natalino em construção para aquelas pessoas céticas, que duvidam de Papai Noel ou da própria magia desse período do ano. A abordagem escolhida aparece tanto entre os dois jovens protagonistas, que possuem um arco dramático formado pelas dores provocadas com a morte do pai, quanto entre os personagens secundários, que através do choque diante da presença do Papai Noel e das habilidades dele, se abrem para algo que a lógica não explica. E esse é o objetivo por excelência de uma boa obra sobre o Natal: encantar e entreter com algo além da racionalidade exagerada, usando a seu serviço de alguns clichês no caminho.