Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 16 de dezembro de 2018

A Pé Ele Não Vai Longe (2018): um esperançoso ensaio sobre superação

A parceria entre Gus Van Sant e Joaquin Phoenix traz para as telas a história real do cartunista que obteve êxito após encontrar ajuda para lidar com o alcoolismo e suas limitações.

Joaquin Phoenix (“Ela”) interpreta John Callaghan, um cartunista de sucesso nos Estados Unidos, mas cuja vida não teria tanto significado até certo momento. Seus desenhos eram considerados extraordinariamente engraçados por uns e extremamente ofensivos para outros, pois lidavam com temas macabros, estereótipos e tabus como doenças e deficiência física. A diferença é que John era tetraplégico e sua visão de mundo não era exatamente simpática e condescendente aos tipos que ele rabiscava. Antes de se tornar artista reconhecido, sua pior batalha foi contra o alcoolismo, e esse é o recorte que o diretor Gus Van Sant (“Elefante”) dá ao filme “A Pé Ele Não Vai Longe”.

O título se refere à legenda cômica de um dos desenhos de John e também ao primeiro volume de sua autobiografia, que inspirou Van Sant a escrever o roteiro do longa. A história começa unindo elegantemente início e fim para deixar claro o trajeto da jornada que será contada desde o dia que ele sofre o fatídico acidente nos anos 1970 até seu reconhecimento como artista. O evento de virada para John é quando começa a frequentar reuniões de Alcoólicos Anônimos lideradas pelo exótico e afável Donnie (Jonah Hill, “O Lobo de Wall Street”). O filme intercala cenas de diversos momentos da vida de John à medida que ele compartilha sua história com o grupo e demonstra como um conjunto específico de pessoas o ajudou a superar a dependência ao álcool e se tornar alguém bem-sucedido apesar das limitações.

A maneira que o diretor retrata o alcoolismo de John é chocante, pois o vemos buscando a bebida como alguém que precisa de oxigênio enquanto tenta esconder seu problema para evitar julgamentos alheios. Porém, o filme evita suscitar pena ao personagem e promove um olhar positivo até mesmo nas situações mais constrangedoras agravadas pela tetraplegia. Essa abordagem deixa o tom da obra bem leve de acompanhar, apesar dos temas fortes, e também está alinhada com a conhecida rejeição do cartunista à maneira que as pessoas costumam demonstrar dó e consternação perante deficientes físicos.

A filmografia de Gus Van Sant é proeminente por trabalhar temas queer como em “Milk – A Voz da Igualdade”, e aqui ele também encontra oportunidade de posicionar o cenário de Portland, cidade comum em muitos de seus filmes, como um ambiente relativamente acolhedor aos personagens homossexuais que cruzam a tela. O diretor também utiliza como pano de fundo temas vistos em outras de seus obras, como a liberdade de jovens skatistas (assunto trabalhado em “Paranoid Park”), que passeiam ao lado da ágil cadeira de rodas de John, e da relação entre mentor/terapeuta e protegidos com potencial talento (como em “Gênio Indomável” e “Encontrando Forrester”), aqui representada pela amizade entre Donnie e Callaghan.

São as provocações do seguro e inspirado Jonah Hill que fazem John processar as mágoas de seu passado de abandono e encontrar em si maneiras de lidar com seus monstros. Sobre tais instigações, o filme também traz um interessante ponto associando o autoconhecimento, resultante das atiçadoras reuniões de grupo, como justificativa para o polêmico conteúdo dos desenhos de Callaghan que evidenciavam sentimentos reveladores dos leitores, tanto pela rejeição quanto pela identificação de seu público. Às vezes assuntos desagradáveis precisam ser levados às pessoas com o objetivo de conscientizar mesmo que causem repulsa em alguns.

Embalado pela música de Danny Elfman (“O Estranho Mundo de Jack”) e por atuações igualmente marcantes de Jack Black (“Escola de Rock”) e Rooney Mara (“Carol”) como coadjuvantes, “A Pé Ele Não Vai Longe” estuda o alcoolismo pelas suas consequências, traçando um retrato cordial, bem-humorado e sem comoção sobre o cartunista cujas experiências negativas de vida influenciaram positivamente seu legado. Da mesma forma, espera-se que o filme também inspire seus espectadores com novos olhares reconfortantes sobre as difíceis questões humanas que ele aborda.

William Sousa
@williamsousa

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