Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Mogli: Entre Dois Mundos (2018): a lição fatal contida na fábula

Exuberante no visual e feroz na condução, a versão de Andy Serkis para O Livro da Selva carrega o gene da Warner em contraponto ao tom inocente do filme da Disney.

Mogli, criado no livro de 1894 por Rudyard Kipling, tem na base da sua história o drama básico para identificação de qualquer público. Impossível alguém não se afeiçoar por uma criança perdida criada por lobos depois que os pais são mortos na selva. Nada mais natural que o cinema recorra de tempos em tempos ao livro para recontar essa história de superação e união. De fato, não há como falar de Mogli: Entre Dois Mundos, dirigido por Andy Serkis (“Planeta dos Macacos: A Guerra”), sem o comparar com “Mogli: O Menino Lobo”, dirigido por Jon Favreau (“Homem de Ferro”). Afinal, são apenas dois anos que separam seus lançamentos.

Curioso observar como ambos os diretores têm visões diferentes da mesma história, apesar de serem semelhantes nos efeitos especiais e reunir um elenco de peso nas vozes dos animais. O filme de Favreau é voltado pro público infantil, o menino é mais heroico e os animais têm tamanhos desproporcionais e são capazes de feitos impossíveis. Não que esses aspectos sejam problemáticos, pelo contrário, o longa entrega tudo que se propõe a dizer, transcrevendo apenas a proposta do diretor. Já o Mogli de Serkis tem uma jornada mais dolorosa, seu semblante é sério e a selva representa mais perigo. Os animais são ameaçadores e com interações mais orgânicas.

Neste novo longa, Mogli (Rohan Chand, de “O Grande Herói”) é criado por uma alcateia em meio às florestas da Índia, vive com os animais da selva e conta com a amizade do urso Baloo (Serkis) e da pantera Bagheera (Christian Bale, de “Hostis”). Ele é aceito por todos os animais, exceto pelo temido tigre Shere Khan (Benedict Cumberbatch, de “Vingadores: Guerra Infinita”), que almeja matar o jovem garoto. Um tempo depois, Mogli acaba se deparando com suas origens humanas e perigos maiores após ter que abandonar sua mãe adotiva Nisha (Naomie Harris, de “Moonlight”).

Já no início, vemos o ataque aos pais do bebê e ele sendo salvo por Bagheera e criado no covil dos lobos. A primeira impressão é que a direção quer começar estabelecendo o conflito, mas no decorrer do filme o diretor mantém pequenas situações com violência física. Sempre há um perigo à espreita, seja vindo dos animais, ou da própria floresta. Em determinado momento, Shere Khan chega a cortar o braço do garoto de cima para baixo, em uma cena que nunca veríamos num filme da Disney. Até aí a nova perspectiva se sustenta, deixando os conflitos reais e gerando consequências. Contudo, ao mudar a personalidade de Baloo para um professor rabugento, a dinâmica foge do já estabelecido, carecendo do alívio cômico proporcionado pelo urso. E a cobra Kaa (Cate Blanchett, de “Thor: Ragnarok”) pouco tem a fazer a não ser intimidar. A narrativa não é uma aventura, e Mogli se prova pela consistência de manter-se sombrio até o fim.

O visual estonteante era de se esperar, pois Serkis tem um vasto currículo como ator fazendo captura de movimentos para personagens famosos, como Gollum e King Kong. A grata surpresa do longa vem da segunda metade em diante, quando Mogli é capturado pelos homens e obrigado a aprender seus costumes. O jovem ator Rohan Chand convence no drama, e os pequenos fragmentos do hinduísmo mesclado com as leis da selva dão um toque de veracidade. O conflito central se torna uma questão religiosa quando Shere Khan começa a matar as vacas da tribo indiana, que são sagradas para eles, e nesse contexto os animais também respeitam as tradições humanas. O ponto alto é quando nos é revelado o grande inimigo dos animais, o caçador, se tornando a antítese de Shere Khan. Colocando o homem em contraponto, o filme se aproxima mais da mensagem de “Bambi” do que de “O Rei Leão”.

O amadurecimento de Mogli é bem desenvolvido e faz jus ao subtítulo do filme, pois ele identifica os melhores integrantes de ambos os mundos e elimina – literalmente – seus algozes. Diante de um inimigo em comum ou para sobrevivência, todos se tornam lobos de uma mesma família. É o que diz a lei: “agora esta é a Lei da Selva, tão antiga e verdadeira quanto o céu. E o Lobo que a respeitar há de prosperar, mas o Lobo que a transgredir deverá morrer. Como a trepadeira que cerca o tronco da árvore, a Lei corre em todos os sentidos. Pois a força do Bando é o Lobo, e a força do Lobo é o Bando”.

Jefferson José
@JeffersonJose_M

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