Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 04 de dezembro de 2018

Vida Selvagem (2018): quando a imperfeição dos pais se torna visível

Com excelentes performances, a brilhante estreia de Paul Dano como diretor lida com um drama familiar na perspectiva de um adolescente a caminho da maturidade quando descobre que seus pais são indivíduos falhos como todo adulto.

1960, Montana, EUA. Joe (Ed Oxenbould, “A Visita”) acaba de se mudar com seus pais para uma pequena casa. Mais uma vez. Pelos olhos inocentes de uma criança, a família parece perfeita. Mas Joe está crescendo e, com a adolescência, a complexidade das emoções começa a lhe dar novas cores para entender problemas adultos. Ao longo de “Vida Selvagem”, o garoto contempla a desconstrução da família e da imagem que ele tem dos pais enquanto tenta compreendê-los, seus desejos, frustrações e atitudes a princípio incoerentes e destrutivas.

Jeanette (Carey Mulligan, “Drive”) é a mãe de Joe e exerce o papel de zeladora da educação do disciplinado menino enquanto o marido Jerry (Jake Gyllenhaal, “O Abutre”) trabalha. Jerry é um homem sociável e empático, porém, quando seu orgulho é ferido, ele se enclausura na teimosia e busca o afastamento social. Ao perder o emprego em Montana, ele não considera outra possibilidade senão se juntar a combatentes dos incêndios florestais que acometem as fronteiras da cidade, mesmo que isso signifique abandonar a família por um pífio salário até o retorno da neve invernal. A situação é o gatilho que faltava para Jeanette tentar tomar as rédeas da casa e de sua vida. Na ausência do marido, ela se torna uma mulher obstinada que quer e precisa ser alguém mais do que o descompasso da sociedade norte-americana do início dos anos 1960 espera dela.

Por econômicas e impactantes cenas minimalistas que realçam a solidão do elenco, o ator Paul Dano (de “Sangue Negro”) estreia na direção de “Vida Selvagem” transferindo seu olhar para o personagem de Joe, que acompanha o início da ruptura do lar com desconfortáveis sorrisos, seja para corresponder às expectativas dos pais ou como uma forma de dizer pra si mesmo que está tudo bem, quando no fundo percebe que não está. Ainda sem idade para assimilar a complexidade emocional dos pais, o complacente Joe observa os adultos como se fosse questão de sobrevivência aprender depressa o idioma confuso da maturidade. De índole prestativa, o menino sai para ajudar no sustento como ajudante de fotógrafo, função apropriada e metafórica para o exercício da sensibilidade do protagonista.

O roteiro de “Vida Selvagem” é resultado da adaptação do livro homônimo de Richard Ford pela colaboração entre Dano juntamente com Zoe Kazan (de “Ruby Sparks”), que presenteia Carey Mulligan com uma personagem complexa e profunda. De tão intrincada, Jeanette desafia tanto Joe quanto os espectadores para estudarem suas motivações sem julgamento. Ela abre o coração para o filho como mulher antes de mãe, pois só tem ele como ouvinte para desabafar, pelo menos até conhecer o afortunado sr. Miller (Bill Camp, “Operação Red Sparrow”), cuja chegada desestabiliza ainda mais as esperanças cultivadas por Joe de que tudo voltará ao que era antes.

Ainda que desafiado pela mãe, o adolescente não tem poder para lutar contra os problemas dos pais. São deles para resolver, apesar de o afetar progressivamente. Com poucos movimentos, a câmera de Dano é particularmente cruel e eficaz em direcionar a perspectiva da audiência para as reações que importam e, principalmente, para o que Joe vê e sente, sufocando pouco a pouco o personagem a ponto de ele querer escapar dos quadros do diretor. Isso culmina numa cena que recorda o clássico “Os Incompreendidos” de François Truffaut, obra que também fala das experiências de um menino frente a problemas com os pais e na escola. Como diz o somatório das vozes femininas do filme, vidas selvagens se adaptam. As que resistem são como árvores estacionárias que padecem quando um incontrolável incêndio se aproxima e, se você pode ver o fogo, é tarde demais para correr.

William Sousa
@williamsousa

Compartilhe