Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O Show de Truman – O Show da Vida (1998): Jim Carrey contra o mundo [CLÁSSICO]

Excelente sátira sobre a distância entre o indivíduo e uma sociedade artificial controlada por uma grande instituição: a mídia.

Nos anos 1990, Jim Carrey já havia emplacado sua marca numa sequência de sucessos como “Debi e Loide”, “O Máskara” e “O Mentiroso”. Sua popularidade acompanhava um estilo de humor único, o homem das milhares de caras cômicas, mas sua versatilidade como ator ainda era questionada. Foi então que ele aceitou o papel central de “O Show de Truman – O Show da Vida”: um homem que é protagonista do próprio reality show desde que nasceu, mas também é o único que não sabe disso. Prestes a completar 30 anos no ar, uma crise existencial leva Truman a uma busca pela sua identidade, cujas consequências podem comprometer o futuro do programa.

As personas de Jim e Truman, ator e personagem, se sobrepõem no filme. Sua especialidade com comédia física transparece, como quando Truman sorri, ele sorri com o corpo todo. Só que esse sorriso é treinado e dissimulado como a rotina da cidade onde vive. Truman não é feliz vivendo o papel imposto a ele pelos produtores do show, que manipulam cada detalhe ao redor do personagem sujeitando ele a um verdadeiro condicionamento social. Sua comunidade, a cidade (cenográfica) de Seahaven, projeta expectativas sobre as maneiras que Truman deve viver sua vida, assim como esperamos que se desenrole na tela um filme de comédia típico do ator, mas não é bem isso que acontece. O que vemos parece ser Jim Carrey, o comediante, mas na verdade a comédia acontece ao redor de um personagem dramático, cuja estranheza e distanciamento só aumentam à medida em que falhas na operação do reality show começam a pôr em risco a farsa. Esse toque de humor dado traz uma leveza necessária ao filme, que poderia ser comparado a um episódio de “Black Mirror” ou “Além da Imaginação”.

Todos os habitantes/atores de Seahaven agem de modo coordenado para condicionar Truman a uma vida sem riscos, para não ser nada além, maior ou diferente, do que o grande criador do show, Christof (Ed Harris, “Mãe!“), planeja para ele. O problema é que a natureza de Truman é exploradora. Ele tem anseios que despertam sua vontade de sair da famigerada zona de conforto e viajar. O filme também oferece uma motivação clara ao protagonista: a busca pelo amor, que estaria no outro lado do mundo. Esses fatores bastam para nos identificarmos com o personagem e torcermos até o fim para que ele se livre do controle de Christof.

O objeto do desejo de Truman aparece elegantemente por meio de fotos de olhares, um nome associado às Ilhas Fiji, uma pulseira de pedras verdes. Sua procura poderia até ser menos desafiadora se não fosse pela esposa fabricada, Meryl (Laura Linney, “Selvagens“), e seu amigo fiel de infância, Marlon (Noah Emmerich, “Super 8“). Ambos fazem parte do elenco principal do “show”, cujo objetivo é manter Truman controlado no caminho da conformidade. Eles também trazem consigo grandes questões morais do filme, como a implícita prostituição de Meryl em prol do programa e outros tantos limites éticos, dos personagens e da televisão, a grande mídia que explora a vida de Truman para vender produtos posicionados como comerciais ao vivo durante o próprio filme.

“O Show de Truman” foi lançado nos cinemas um pouco antes da estreia mundial do programa de TV “Big Brother”. Daí traçar um paralelo entre o filme e o reality show se tornou inevitável, e muitos preferiram ler o filme como uma crítica a este modo de criar conteúdo para televisão em detrimento da jornada do personagem por sua identidade. A arte definida para o filme, que traz aspectos da televisão norte-americana, também colaborou para essa leitura. Os planos cinematográficos misturam a estética da câmera escondida, do zoom de lentes, com a linguagem clássica, necessária para mover a história adiante. Vemos também o pastiche dos comerciais de TV norte-americanos, das cores saturadas e do estilo kitsch nos interiores das casas e no figurino, além de Mozart para destacar o ritmo do cotidiano, e de product placements (publicidade indireta) completamente antinaturais, de onde nasce muito do humor do filme. Tudo isso ajuda a disfarçar a essência sombria da história. Enquanto Truman segue o perigoso caminho de um colapso mental, os espectadores se distraem com as sátiras e aguardam a próxima piada de Carrey.

À medida em que a história se aproxima do desfecho, o real alcance dos poderes de Christof sobre a cidade é revelado. O universo do filme se amplia para incluir também o mundo do criador e sua perspectiva. A palavra em latim “omni” é recorrente ao fundo nos cenários e remete às características divinas de onisciência, onipresença e onipotência de Christof, que são desafiadas pelo herói. Mesmo os personagens coadjuvantes são testados numa escalada de abusos até o extremo da resistência de Truman.

“O Show de Truman – O Show da Vida” é um marco indistinguível na filmografia de Jim Carrey e evidência da potencialidade dramática do comediante. Debaixo das camadas de sátira e crítica ao poder midiático existe uma busca universal por individualidade, atributo de fácil identificação popular. Truman rapta pra si o conceito de herói do próprio filme e por isso torcemos por ele. Da mesma forma que os espectadores do reality show aguardam ansiosos o que vai acontecer em seguida, o suspense da pergunta “como essa história irá terminar?” nos faz ficar na beirada da poltrona até o fim desse brilhante filme.

William Sousa
@williamsousa

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