Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sequestro Relâmpago (2018): road movie paulistano

A soturna jornada pela madrugada de São Paulo alterna suspense e drama ao revelar contrastes entre vítima e criminosos, construindo um relato reflexivo sobre desigualdades sociais.

Artigo 158, parágrafo 3º do Código Penal Brasileiro. O que você faria se sofresse um “Sequestro Relâmpago”? Tentaria fugir, resistiria ou faria tudo que mandassem? Faz diferença se a vítima é mulher ou se o criminoso é negro? O filme de Tata Amaral (“Antônia”) é inspirado por uma história real, mas poderia ser por qualquer um dos outros milhares de casos semelhantes que ainda acontecem no país. O que a diretora traz sobre o crime tão comum é a oportunidade de refletir sobre os papéis dos envolvidos num jogo de poder e domínio.

Isabel (Marina Ruy Barbosa, “Todas as Canções de Amor”) é uma jovem mulher independente. Ela ostenta seu belo carro que a leva do trabalho aos encontros com amigos e pretendentes amorosos. No meio do trânsito de São Paulo, o veículo serve como vestiário improvisado e também como um dos melhores exemplos de publicidade indireta no cinema nacional. Menos afortunados estão Matheus (Sidney Santiago, “Estamos Juntos”) e Japonês (Daniel Rocha, “Eu Sou Brasileiro”), a dupla que se une para “meter os ganho”. Não demora muito para o caminho mal-intencionado deles cruzar com o de Isabel, que sob a mira de revólveres precisa levar os dois (e o Duster) pela capital paulista para realizar saques de dinheiro.

Entre frustrações e mudanças de planos, Tata constrói as relações entre seus três protagonistas num filme de estrada por uma São Paulo sombria e inóspita. A tensão gerada pela abordagem violenta e pelo assédio dos assaltantes aos poucos cria novas dimensões. Japonês é um frentista palerma que deseja ser respeitado a qualquer custo. Matheus é mais racional e tem bastante a perder caso falhem, já que é pai de família. O contraste das personalidades de ambos inflama uma disputa por poder, que compromete a atenção dos dois e gera oportunidades para Isabel escapar, permitindo à diretora pincelar seus comentários sobre machismo e exclusão social.

Com o passar das horas, Isabel percebe que as chances de sair bem da situação dependem da sua influência e manipulação. Ela busca se aproximar dos criminosos e cooperar em negociação para reduzir os estresses e as faíscas. Tais habilidades rimam com síndrome de Estocolmo, difícil de compreender por quem nunca foi vítima de sequestro e, por isso, é fácil se precipitar para julgar as atitudes da garota como incoerentes. De fato, algumas até o são, mas por outros motivos, como quando Isabel tenta convencer a dupla que ela é “igual” a eles, ignorando o abismo entre as classes e os privilégios por ser branca. Num momento que dá outras cores problemáticas para a heroína, a personagem sugere ser melhor que Matheus por saber o que significa o “D” do câmbio automático do carro. São em momentos como esses que Tata deixa claro que seu “Sequestro Relâmpago” não é um simples suspense com claras divisões entre bem e mal e convida o espectador a ler nas entrelinhas.

Existe um elenco de apoio diverso, que ao lado dos protagonistas forma faces comuns nos centros urbanos brasileiros. Para compor tais personagens, os atores contaram com a experiência da preparadora de elenco Fátima Toledo, cujo reconhecido método é polêmico pelo grau de exigência emocional, porém, resulta em ótimas imersões como as vistas aqui. À medida que a relação entre Isabel, Matheus e Japonês se torna ainda mais complexa, a expectativa por um desfecho catártico típico de um thriller diminui. A sequência definitiva para o fim da jornada do trio acontece antes mesmo do fim do longa, entre “brejas” e forró.

É preciso ressaltar que a obra de Tata Amaral não é um filme de vingança nem um terror de sobrevivência, apesar de alguns elementos como a trilha sonora e a montagem apontarem para essas direções. A tensão construída pela diretora se desmonta quando precisa permitir a aproximação dos espectadores aos personagens e tão logo é recriada para dar ritmo. Tais mudanças magnéticas podem dificultar o posicionamento da audiência, que precisa decidir se empatiza com o trio ou torce pela vítima sem prever o rumo do filme. No entanto, é justamente nesse exercício de observações e reflexões que o relato cinematográfico de um crime típico e comum encontra seu mérito.

William Sousa
@williamsousa

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