Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Infiltrado na Klan (2018): todo o poder para todo o povo

Em um momento onde a segregação velada é cada dia mais crescente e aceita, o longa trata de deixar claro qual o lado certo e o errado da questão.

Supremacia branca, neonazismo e a Ku Klux Klan são ideologias abomináveis e devem ser combatidas. De tempos em tempos, esse discurso, que aparenta ser infindável, retorna aos poucos, sendo necessário deixar claro que não existe questionamento, tolerância ou liberdade de expressão quando se trata de temáticas como essas. Estamos vivendo um momento assim, e é por isso que uma obra direta e sem rodeios como “Infiltrado na Klan” se faz tão necessária.

Como seria possível imaginar algo como um policial negro – o primeiro de sua cidade – se infiltrando na KKK? Pois a história de Ron Stallworth (John David Washington, da série “Ballers”) é tão verdadeira quanto inacreditável. E Spike Lee (Ela Quer Tudo”, “Malcom X) não se exime de deixar bem claro que Ron é o herói, e a KKK, representada principalmente pelo nome de David Duke (Topher Grace, “Máquina de Guerra”), é a vilã, como de fato deve ser. Ainda assim, o cineasta capricha em harmonizar os extremos, para não tornar a narrativa tão maniqueísta. Ron participa (infiltrado) de reuniões de manifestantes black power, mas deixa claro não concordar com tudo que é dito. Já Duke tem uma personalidade serena, distante de todo o ódio e preconceito que carrega consigo e dissemina em sua organização. De fato, à exceção das sequências finais, nunca sentimos uma atmosfera densa demais, mesmo com todo o peso dos assuntos tratados no longa.

É evidente que Ron não poderia estar presente nos encontros da KKK. Para contornar isso, seu parceiro Flip Zimmerman (Adam Driver, Star Wars: Os Últimos Jedi), um judeu “não praticante” branco, aceita a missão de ser a presença física da dupla, enquanto o policial negro seria a voz que se comunica com os membros do Klan por telefone. Driver consegue trazer nuances formidáveis ao personagem. É impressionante visualizar como uma pessoa que até então possuía o privilégio de poder estar alheia às lutas sociais (o famoso “não é comigo”) se vê em um processo de desconstrução, ao afirmar que agora o assunto não sai mais de sua cabeça. Para isto, Flip sofreu uma exposição pesada ao ódio e ao preconceito, mantendo o sangue frio de policial, mas demonstrando sua crescente insegurança e medo quando os momentos de perigo ficam para trás.

À medida que a investigação se aprofunda, vamos sendo apresentados a dois pontos de vista: o da assembleia local da KKK, mais explorado e responsável por mostrar o quanto os cidadãos ditos “de bem” ali presentes possuem tanta indignação e desprezo pelos seus semelhantes – considerados por eles diferentes e inferiores; e o do grupo de estudantes negros, um pouco menos aproveitado e traduzido basicamente na relação desenvolvida entre a líder estudantil Patrice (Laura Harrier, “Homem-Aranha: De Volta ao Lar”) e Ron. As grandes proezas desse núcleo acabam se resumindo em representar excepcionalmente bem o ambiente de convívio comum aos negros da época – sobretudo no aspecto visual -, e tocar os corações dos espectadores com as falas das lideranças black power. E Lee conseguiu equilibrar perfeitamente o tom desses discursos. No início, o público é incentivado a buscar a tão sonhada revolução e libertação (o que rendeu tomadas espetaculares, focadas nas expressões atentas de quem presenciava a pregação do orador). Já em outra ocasião, o clima é bem mais acalentado e lamentoso, quando um ancião, ainda da época onde o 2º Klan atuava, conta a história brutal do linchamento e posterior condenação de um negro em um ambiente repleto de brancos.

Somado a tudo isso, o grande pretexto do longa é mostrar que uma narrativa construída desde a Guerra Civil Americana – uma espécie de patriotismo desvairado e supostamente garantidor do direito à autolegislação dos estados – sempre atrai muitos adeptos, mesmo preterindo (ou até mesmo negando) a existência de questões como o holocausto ou a escravidão, tanto na parte econômica quanto no quesito ideológico. E mais triste é perceber que sempre mais e mais pessoas irão aceitar esses discursos, que não passam de uma forma velada e “pelas beiradas” de elevar uma ideia terrível. Haja visto, por exemplo, na cena onde é discutida a ascensão de David Duke na esfera política, almejando até mesmo o cargo de presidente. Quando Ron afirma ingênua e categoricamente que a América nunca elegeria alguém como Duke, um ser dotado de uma certeza inerente de que o branco é superior ao negro, ele não poderia estar mais equivocado.

As pessoas estão novamente perdendo a vergonha de andar por aí ostentando símbolos e representações de um passado tão sombrio que, embora não possa ser esquecido, jamais deveria voltar a ser praticado. “Infiltrado na Klan” é uma obra importantíssima no momento atual, onde toda e qualquer ideia de superioridade de raças deve ser imediatamente refutada. Retratar uma história ocorrida há tanto tempo, mas mais presente do que nunca em todo o mundo, é a prova viva de que a História nunca deve ser apagada, para que grandes erros não voltem a se repetir.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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