Depois de vencer o Oscar em 2013, o diretor mexicano retorna com uma obra prima emocionalmente poderosa e de abordagem intimista.
Autor de clássicos como “Filhos da Esperança” e “Gravidade”, responsável ainda por “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (considerado por muitos o melhor da franquia do bruxinho), o mexicano Alfonso Cuarón agora volta seus olhos novamente para seu país natal, com um filme que se aproxima muito mais de “Y Tu Mamá También”, outro sucesso de crítica do diretor. Inspirado por vívidas lembranças na Cidade do México e a relação que sua família tinha com as mulheres que cuidavam dele quando pequeno, o cineasta entrega em “Roma” uma experiência delicada, intimista, cheia de afeto e com toques de tragédia, tudo envelopado em uma belíssima fotografia em preto e branco e técnicas cinematográficas apuradas.
Funcionando quase como uma semi-autobiografia, “Roma” narra muitos fatos que os olhos de Cuarón testemunharam, como, por exemplo, a relação de sua família de classe média com duas empregadas de origem indígena. No entanto, a narrativa se debruça sobre uma delas em especial: a doméstica Cleo (Yalitza Aparicio), uma doce e tímida mulher que trabalha para uma família mexicana. Empregada dessa casa há muito tempo (o hábil roteiro de Cuarón deixa isso bem claro sem a necessidade de pormenores, basta ver o tamanho do carinho que ela tem pelas crianças da casa), Cleo não deixa de lado suas raízes como quando opta por conversar com sua amiga por meio de um dialeto que parece ser herança de seu povoado.
A nossa protagonista, em sua primeira e bem sucedida jornada como atriz, é a expressão da pura realidade. Trabalha desde jovem, vive longe de sua mãe e mora nos fundos de uma casa onde é acolhida por uma família cheia de conflitos, os quais passam a ser os dela. Porém, o rico argumento faz questão de ressaltar que ela se diverte, vai ao cinema, tem seus encontros e nutre muito amor por aqueles de quem cuida. A personagem, composta com esmero, é cheia de nuances, mas sua força está no silêncio que toca o coração. Silêncio esse que se faz muito presente no roteiro de Cuarón, transformando o longa numa obra-prima digna de contemplação, cuja beleza pode ser vista quadro a quadro, junto com sua estética primorosa.
A câmera de Cuarón é o “olho que tudo vê”. Nas mãos de diretores menos experientes, acabaria cedendo a contornos mais dramáticos, alternando entre excesso de closes e agitação desnecessária. Com ele, no entanto, o público é levado a passear pela mise-en-scène (que por sua vez é elaborada com perfeição). Não existem movimentos bruscos. O deslocamento suave manipula nosso olhar sem esforço, num balanço constante, o que resulta em graciosas rimas visuais ao longo da narrativa. Nem mesmo em situações mais trágicas, como na reprodução do El Haconazo, ela perde a classe. Permitindo se deixar conduzir, o espectador é recompensado com uma viagem carinhosa e emocionante por entre as calles do México nos anos 70.
Além das atuações, sensíveis e realistas, e do roteiro original, preciso e cheio de tonalidades, a obra se destaca ainda por apresentar uma fotografia estilosa que, na impossibilidade de ser realizada pelo amigo Emmanuel Lubezki (“O Regresso“), foi produzida pelo próprio Cuarón, aproximando ainda mais o diretor de sua criação. As imagens, reforçadas pelo preto e branco, ganham um peso dramático e conferem às sequências mais intensidade do que muitas obras de paletas coloridas. Se mudo, o filme já seria exuberante, com som seu impacto dobra. Tanto a trilha como a sonoridade dos elementos são marcantes, revelando a complexidade de uma produção de conteúdo familiar.
“Roma” merece a atenção do público. E ao final aplausos. Alguns tiveram – ou terão – a sorte de assistir no cinema, em salas com ótimo som e tela gigante. Porém, esse filme da Netflix tem a capacidade de causar a mesma comoção se visto na TV, no celular ou outros aparatos. A beleza está lá e intacta. Uma história simples, de cunho pessoal, verdadeira e que, acima de tudo, é um conto de relações e uma coleção de momentos inesquecíveis. Uma carta de amor de seu diretor ao cinema e ao público que está sempre pronto para ser cativado.
*Filme visto no encerramento da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.