Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 08 de novembro de 2018

Em Chamas (2018): a experiência de ler um surpreendente mistério

Repleto de metáforas visuais e literárias, o filme sul-coreano é um intrigante estudo de personagens enfrentando crises existenciais com dramas e segredos que pouco a pouco se tornam verdadeiros incêndios.

Há coisas que não podemos ver quando estamos perto demais. Pelo menos é o que diz o enigmático bon vivant Ben (Steven Yeun, “Okja”) para o jovem solitário Jong-su (Yoo Ah-in, “O Veterano”) em “Em Chamas”, um neo-noir sul-coreano livremente baseado num conto do autor japonês Haruki Murakami. Não compreender totalmente o que está próximo também resume a sensação de acompanhar a obra do diretor Chang-dong Lee (“Poesia”), que se veste de mistério cena após cena e não oferece respostas fáceis.

Recém-formado em escrita criativa, Jong-su precisa voltar para a pequena fazenda decadente na qual morava em Paju, uma cidadezinha rural nos limites da Coreia do Sul. Seu pai está preso por agressão, atitude em linha com a personalidade raivosa que culminou no abandono de Jong-su por sua mãe quando criança. O rapaz deseja ser escritor, no entanto, perdido e indeciso, ainda nem sabe sobre o que quer escrever. Durante um de seus bicos como entregador em Seul, Jong-su cruza caminhos com Hae-mi, uma antiga vizinha de infância da qual ele não se lembra. Interpretada pela estreante Jong-seo Jeon, a garota usa o charme para atrair a atenção do hesitante conhecido e persuadi-lo a cuidar de seu gato enquanto ela faz uma viagem para a África.

Hae-mi mora numa quitinete bagunçada na periferia de Seul. Jong-su se encanta com a vista do apartamento e com a garota. Ao transarem, ela o faz se dar conta da sorte por estar no raro momento em que o sol ilumina o seu quarto. O felino chamado Fervura, porém, nunca aparece por medo de desconhecidos. Essas e outras muitas referências ao fogo, como nos expressivos pores de sol, no acender de isqueiros e no nome do gato, são somente metáforas secundárias em relação à imagem que o título remete. Sem pressa, a figura que melhor representa tais chamas apenas será comentada adiante no texto, só para ilustrar como, da mesma forma, o roteiro não entrega de bandeja respostas às questões que levanta. Ser conduzido pela trama de “Em Chamas” está bem próximo à experiência de ler um romance sem expectativas sobre o destino de seus personagens.

Na rotina entre Paju e Seul, as facetas de Jong-su são calmamente pintadas na tela. Na fazenda, ele encontra reminiscências da infância e uma coleção de facas do pai. No apartamento de Hae-mi, ele se masturba em pé contemplando o panorama da janela. Quando a garota retorna da África acompanhada do novo e rico namorado, Ben, a semente de uma progressiva obsessão é plantada. Só não se deixe enganar pelas tantas expectativas que o longa subverte, pois quem inflama o interesse de Jong-su no caso é Ben. Os três então formam um triângulo notoriamente inspirado nos personagens de “O Grande Gatsby”.

O livro de F. Scott Fitzgerald não é o único conscientemente referenciado por Lee em seu filme. Jong-su confessa a Ben que seu autor favorito é William Faulkner, pois seus romances às vezes se parecem com sua própria história. De fato, Faulkner possui um texto, intitulado “Queimar Celeiros”, que fala sobre conflito de classes através de uma relação paternal semelhante a do protagonista e seu pai. Não é à toa que a obra de Murakami em que se baseia o longa leve o mesmo título do conto do escritor americano. Ben e Jong-su formam opostos no estrato social sul-coreano, cuja distância é tratada como motivo de frustração latente do fazendeiro aspirante a escritor, e pelo tédio furtivo do hospitaleiro playboy que faz qualquer coisa por diversão. Numa emblemática visita do casal a Jong-su, a ideia de queimar estufas é então mencionada, desenhando a principal metáfora visual do título e traçando os destinos do trio pelo resto da obra.

A crescente raiva contida de Jong-su alcança ebulição à medida que o interesse em Hae-mi e Ben toma o lugar de sua tristeza existencial pontuada pela trilha nervosa e jazzista. Num contexto socioeconômico de desalento e sem uma sólida referência familiar, o jovem investiga os passos do casal como enigmas a resolver seguindo rumos possivelmente destrutivos. “Em Chamas” é essencialmente um estudo de personagens e suas intrincadas emoções. Na ponta da caneta de Chang-dong Lee, e para seu introspectivo protagonista, o incendiável mundo é um provocante e surpreendente mistério.

William Sousa
@williamsousa

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