Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 06 de novembro de 2018

O Outro Lado do Vento (Netflix, 2018): um espelho para Orson Welles

Décadas após seu falecimento, Orson Welles entrega uma obra pessoal difícil de agradar o grande público, mas com muito a dizer sobre Hollywood.

O Outro Lado do Vento” tem uma história conturbada. Tanto em sua trama como nos próprios registros do que foi necessário para este filme ser terminado. Último trabalho de um dos maiores nomes do cinema, Orson Welles (“Cidadão Kane”), o longa foi filmado entre 1970 e 1976, sendo que seu protagonista não estava escalado até 1974! Nesse ínterim, produtores abandonaram o projeto, verbas foram supostamente desviadas e emprestadas e o processo foi lento e desgastante. Quando tudo parecia estar encaminhado e as filmagens estavam terminadas, um dos principais investidores conseguiu bloquear os direitos de exibição na justiça, dando início a uma longa e enfadonha batalha em tribunais. Décadas depois, a Netflix conseguiu o acordo necessário para que pudessem contratar um editor para montar o longa na maneira mais fiel possível à visão original de Welles, que havia deixado inúmeras anotações, algumas cenas montadas, e mais de 100 horas de material bruto disponíveis.

História real e fictícia se espelham num dos mais curiosos casos onde a vida imita a arte (e vice-versa). Na trama, o experiente diretor Jake Hannaford volta de um exílio autoimposto na Europa para concluir seu mais recente trabalho nada convencional. Lidando com a falta de orçamento e com produtores que não conseguem compreender a linguagem complexa de sua obra e tentam encaixá-la em moldes padronizados, Hannaford é Welles (que também se afastou de Hollywood), frustrado e impaciente com essa realidade.

Ao criar este mocumentário (ou pseudodocumentário) para discorrer sobre seus dissabores, as alfinetadas são distribuídas sem receios. Ninguém escapa. Produtores, atores, críticos, bajuladores, etc. É um gigante ataque de ironia à hipocrisia da indústria cinematográfica norte-americana, que valoriza artistas que pensam fora da caixa, mas os temem e os rejeitam quando aparecem. Nos poucos casos em que um consegue se destacar e ter sucesso, há um festival de falsidade com discursos enaltecedores que querem apenas usar a imagem do artista para satisfazer o próprio ego.

O enredo acontece numa festa na casa de Hannaford, interpretado com majestade e desgosto por John Huston (“Chinatown”), que convida dezenas de pessoas interessadas em criar documentários sobre a figura mítica do diretor para filmarem à vontade, ao mesmo tempo em que cenas de seu longa não terminado são projetadas. As cenas da festa transitam entre as dezenas de câmeras dos envolvidos.

Welles entrega uma obra autoral que desafia o espectador. As imagens da festa e do longa fictício de Hannaford são largamente díspares. Enquanto na obra não terminada temos fotografia e planos lindíssimos com imagens limpas, nas imagens da festa temos trocas de cores com imagens fortemente granuladas e tremidas. Em ambos os casos há a imersão de estarmos na festa, seja assistindo a sua obra inacabada, seja ouvindo diálogos fragmentados de pessoas conversando ao redor. Sim, é caótico, e o próprio roteiro dá o recado de que não é vital que se entenda tudo o que está acontecendo ao mostrar um personagem questionando sobre rolos trocados na projeção e ouvir o outro perguntar se faz diferença. A narrativa não é linear, mas há diálogos chave em certos momentos que carregam bem a linha principal.

A montagem disso tudo ficou a cargo de Bob Murawski (vencedor do Oscar por “Guerra ao Terror”), que se valeu do conteúdo deixado por Welles e encarou uma responsabilidade rara. Tendo ajuda de Oja Kodar (que fez outras duas produções com Welles que não foram terminados por dificuldades financeiras), atriz e roteirista do filme, o montador trouxe uma narrativa labiríntica, estranha e cansativa, que exige de seu público paciência e disposição para entender o que está sendo dito por trás do que se vê na tela. Não é uma obra de fácil digestão, verdade, mas mesmo se essa colcha de retalhos parece confusa, cobre todos os itens indispensáveis. Pelas diferentes lentes dos convidados, enxergam-se conflitos, desgosto, falsidade e até mesmo admiração. São relações complexas entre pessoas com desejos únicos, desempenhando seus papéis no jogo cínico das relações hollywoodianas. O filme fecha com um genial monólogo em off do protagonista, que amarra bem a ideia principal do longa numa fala final com fina ironia, mas que infelizmente se perde na tradução.

Orson Welles é uma das figuras mais importantes da história da sétima arte, e entrega uma obra difícil e pessoal, que não agrada o grande público, mas carregada de subtexto e ironia. Mesmo já falecido, ainda tem muito o que dizer sobre o ofício e a carreira que amou por tantos anos.

Bruno Passos
@passosnerds

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