Adaptação da HQ de 2013 se aproveita do momento tenso no Brasil para vender a história do justiceiro que mata políticos e reforçar a máxima de que "somos todos corruptos", mas perde a chance de sair do campo da lição de moral.
Lançar um filme sobre um assassino de corruptos dias após uma eleição presidencial marcada por atos violentos e acusações de crimes vindas de todos os lados é uma bênção e uma maldição. A bênção vem para o lado marqueteiro da situação, que aproveita o hype do clima político para vender uma história que mexe com sentimentos de vingança e catarse da população. A maldição é o trabalho de fazer um longa com tal temática sem que ele caia em um dos extremos: a armadilha de incitar a violência sem querer, ou se preocupar demais com o discurso correto a dar. Envolvido nesta cruzada está “O Doutrinador”, que procura um meio termo entre entretenimento e a responsabilidade social que a temática pede.
O maior receio que o filme de Gustavo Bonafé (“Legalize Já: Amizade Nunca Morre”) demonstra é o de passar a mensagem de que “a corrupção está em todos nós” com toda clareza possível. E o recurso para transmitir o recado é através da empatia com os personagens. O principal canalizador desta identificação é Miguel (Kiko Pissolato, de “Os Dez Mandamentos: O Filme”), um policial altamente treinado que vê a filha ser acertada por uma bala perdida para depois morrer nas mãos da negligência e falta de recursos do hospital público de sua cidade, a fictícia Santa Cruz.
Não bastasse a tragédia pessoal, Miguel também é obrigado a engolir o governador do estado (interpretado por Eduardo Moscovis, de “Berenice Procura”), que foi preso por corrupção e logo depois solto por um habeas corpus duvidoso, discursando em rede nacional que nenhum recurso do sistema público de saúde foi desviado. Usando uma desgraça que facilmente gera indignação por ser tão próxima da realidade, aliada ao ar de cinismo muito convincente do personagem de Moscovis, é fácil ser dominado pela vontade de fazer justiça com as próprias mãos logo nos primeiros momentos do filme – exatamente como Miguel o faz em certo momento da narrativa. Depois disso, o policial inicia sua vingança contra todos os políticos que, em sua visão, merecem morrer por roubar o povo. Assim, ganha da imprensa sua alcunha de o Doutrinador.
A partir deste ponto, o longa tenta mostrar o “outro lado”: os personagens que gravitam em torno de Miguel e que têm a função básica de mostrar que o “herói” enlouqueceu, como se fossem sua consciência personificada. Edu (Samuel de Assis, da série “3%”), o colega de profissão de Miguel; Nina (Tainá Medina, de “A Casa de Cecília”), a hacker que o protagonista chantageia para ajudá-lo a localizar seus novos alvos; e Isabela (Natália Lage, da série “Sob Pressão” ), ex-esposa do policial; são os encarregados de trazer o espectador para o lado racional.
Na tentativa de ser enfático no discurso de que não adianta matar poderosos corruptos sem acabar com a corrupção dentro de nós, o filme desliza em retratar seus personagens políticos de forma ainda tão caricata. Eles são claramente vilões, com suas risadas maquiavélicas e reuniões secretas para discutir planos malignos de enriquecer a custa do povo. Os únicos propósitos dos políticos na narrativa são de trazer características semelhantes às dos governantes reais para que o público possa identificá-los, e morrer nas mãos do Doutrinador. Mas o roteiro perde a oportunidade de sair do campo unidimensional com seus antagonistas declarados. Eles teriam potencial para ajudar a trama a passar sua mensagem de forma mais eficaz se tivessem alguma profundidade. Ser mau só por ser mau já não convence.
Momentos cômicos não intencionais também surgem aqui e ali no decorrer da trama, como alguns diálogos que ainda possuem o vício das novelas brasileiras: frases muito corretas e formais, mas que apostam nos palavrões só para dar o tom coloquial, quebram o clima em horas inoportunas. Cenas muito focadas em dar o que, o filme presume, o público quer ver caem na galhofa também por conta dos efeitos especiais que ainda parecem esteticamente artificiais.
Apesar das derrapadas, o elenco consegue puxar para uma imersão na história e fazer o público se importar com quem está na tela. E um dos grandes méritos de “O Doutrinador”, lembrando que é um adaptação da HQ de Luciano Cunha lançada em 2013 (que também surgiu de outro momento marcante na política brasileira, logo após as Jornadas de Junho), é de se espelhar em produções da Marvel Studios e da DC Films para trazer uma coisa não trabalhada no cinema nacional: os filmes baseados em quadrinhos de heróis. As cenas de ação beberam das fontes certas para transmitir a tensão do momento, e a direção de Bonafé soube dar vida às lutas das HQs.
Talvez a fim de evitar que o filme fosse usado como campanha política – importante ressaltar que o lançamento foi adiado em dois meses para não coincidir com a campanha presidencial –, o tom que “O Doutrinador” passa, especialmente em sua conclusão, é de que se isentou de discutir mais a fundo as causas da corrupção. A intenção é boa, mas cai na lição de moral clássica. Somos, de fato, corruptos e corruptíveis. Entretanto, só repetir esta máxima esvazia o discurso e soa como se a produção quisesse se livrar da responsabilidade de fazer um filme de justiceiro dado o contexto brasileiro atual. Cinema é entretenimento, mas ignorar que entretenimento também é político nos lembra que de boas intenções, o inferno está cheio.