Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 11 de setembro de 2018

Benzinho (2018): o agridoce do apego

Um filme para Karine Teles chamar de seu, que destaca as finas contradições do afeto, sem deixar de lado sua relevância política, e mostrando a resiliência dos brasileiros em tempos de crise que insistem em sonhar.

Firmando seu nome como um dos mais relevantes da atual produção cinematográfica brasileira, a atriz, roteirista e diretora Karine Telles (de “Que Horas Ela Volta?”) protagoniza “Benzinho“, drama familiar baseado na história universal do apego maternal. Escrito em parceria com o diretor do longa e seu ex-marido, Gustavo Pizzi, de quem se separou ao longo das filmagens, a história consegue escapar de certas redundâncias dos roteiros nacionais, trazendo uma abordagem bastante honesta sobre a dinâmica de uma família de classe média num Brasil em crise, apontando a matéria do afeto como substância da resiliência de nosso povo.

Otávio Muller (de “O Gorila”) é o marido que busca, criativa e utopicamente, saídas à crise financeira familiar diante da falência de seu pequeno negócio. Enquanto isso, seu filho mais velho (interpretado pelo grego Kostaninos Sarris) é convidado para jogar handebol profissionalmente na Alemanha, abalando a estrutura familiar. O foco desse acontecimento, porém, é dado à protagonista Irene, que irá enfrentar mais ou menos bem uma penosa jornada de desapego. Nesse sentido, Karine tem muitas cenas para brilhar, e não desaponta com uma atuação transparente, de cara lavada e extremamente comovente de uma mãe que não sabe abrir mão da ilusão do controle, mas que entende seu direito a uma vida melhor.

Assim como em “Que Horas Ela Volta?” e alguns outros bons filmes nacionais, sensíveis à realidade popular e positivos ao destacarem nossas potencialidades, o roteiro de “Benzinho” é recheado de detalhes sutis sobre o cotidiano brasileiro e as experiências de seus habitantes, que enriquecem a trama e conferem veracidade à história em tela. Assim, a personagem de Irene não é resumida ao estereótipo opaco de uma mãe de quatro filhos, mas é dotada de poder de ação, guiando a própria história, à medida que enfrenta sua jornada de descoberta, dando os passos que as pernas permitirem em direção aos seus próprios sonhos. Como exemplo, acompanhamos os dias que antecedem sua formatura, uma conquista tardia que ela orgulhosamente propagandeia entre seus amigos, distribuindo convites para a festa e nos mostrando, com isso, os cenários de Petrópolis em que habita no seu cotidiano. Do mesmo modo, conhecemos sua irmã Sonia (Adriana Esteves, a eterna Carminha de “Avenida Brasil”), fugida dos abusos e agressões do marido, que se junta à irmã nas mais variadas tarefas, do preparo de quentinhas a mascates na rua, para gerar renda à família e sustentar os filhos.

Essa dimensão da labuta, da lida e do esforço destacado de suas personagens femininas se contrapõe a figuras masculinas sempre erráticas, que flutuam ora em devaneios, como o atrapalhado personagem de Muller, ora em paranoias, como o agressivo Alan (Cesar Troncoso), cunhado de Irene, que surge como um fraco antagonista à história. Nesse sentido, porém, vale o esforço de destacar os desafios da dupla jornada feminina, bem como sua resiliência e persistência, mesmo que às vezes aos trancos e barrancos. Assim, as crises de Irene, que aos poucos manifesta seu desespero com a ida do filho (e ameaça, infelizmente tão comum a tantos de nossos jovens, de nunca mais voltar ao país) e também as idas e vindas de sua maltratada irmã ao marido abusivo não são exemplos de um retrato de fraqueza feminina, mas a construção de personagens complexas, completas e dotadas de múltiplas camadas, ainda que contraditórias.

Outra camada, assim, é do afeto familiar, composto em tela por sequências simples e realistas, mas ainda assim poéticas, de retratos conhecidos às famílias brasileiras, como feriados na praia, churrascos no quintal e dias modorrentos assistindo televisão, etc. Aqui, o núcleo da família é preenchido pela vida que os meninos de Klaus e Irene trazem em cena, atuando com desenvoltura e intimidade entre atores bem mais experientes.

Vale ainda pontuar a cenografia inspirada que preenche ricamente algumas cenas corriqueiras, como a mudança de casa ou uma tarde na praia. Com isso, “Benzinho” oferece um poético retrato da dinâmica familiar, destacando o que há de mais sensível nos afetos, entre momentos em que o amor causa sofrimento e, outros, em que também se goza dos prazeres fugidios de um lugar onde mais intimidade e afeto não pode haver.

Vinícius Volcof
@volcof

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