O deslumbre visual e técnico não devem esconder o apontamento ousado do roteiro em defender a superação das diferenças e integração entre os povos em momentos de crise.
Os atuais fluxos migratórios de refugiados, que surgem como carma aos abusos coloniais dos séculos XV e XVI e desestabilizam a confortável vida europeia, têm sido abordados das formas mais diversas pelos autores do audiovisual. Se, por exemplo, no filme franco-alemão “Em Pedaços” (2017) temos uma microanálise dos impactos da crise pelo foco numa família nuclear devastada por uma realidade de perseguição, suspeita e ataques terroristas, na produção húngara “Lua de Júpiter” temos um retrato dessa situação numa escala ampliada, em que o diretor renova os gêneros do realismo fantástico e do surrealismo, reforçando sua presença em nossos dias atuais.
Em parceria com Kata Wéber, a trama de Kornél Mundruczó (“Johanna”) acompanha a tentativa de entrada de refugiados sírios na Hungria através da fronteira com a Sérvia pelo ponto de vista do jovem Aryan (Zsombor Jéger), que é alvejado pelo policial Lászlo (Gyorgy Cserhalmi), mas escapa da morte desenvolvendo poderes de levitação. Socorrido pelo médico do acampamento de refugiados Gabor (o ótimo Merab Ninidze), que secretamente também realiza serviços de atravessador de imigrantes, o garoto irá circular pela cultura húngara, incluindo sua excêntrica elite a quem o médico atende em serviços espúrios, sempre como a figura invisibilizada ou excluída que encarna a precariedade de sua situação de refugiado. Brincando com a fantasia e fazendo do continente europeu a mística lua de Júpiter a quem dá nome, o menino encarna também uma potência redentora. A condição especial do garoto e a perseguição das autoridades migratórias – personificado no vilão Lászlo, que assume a carapaça artificial das antíteses dos filmes de ação –, faz com que Gabor o veja como uma figura angelical, mudando sua perspectiva sobre o futuro de sua sociedade.
Antes de falarmos dos efeitos especiais que preenchem o filme com cenas arrasadoras, vale a pena explorar o estilo adotado pela narrativa, que destaca a aridez dos cenários e das relações pessoais. Se a intenção de Kórel era destacar uma sociedade fria e embrutecida por seu contexto político, os personagens secundários evidenciam como se dão essas difíceis relações, recheadas de cinismo, traumas e corrupção. Explicita isso a relação complexa que Gabor mantém com Vera (Monika Balsai), enfermeira do hospital que serve de grande ajuda em seu esforço para proteger o jovem sírio. Os cenários dos campos de refugiados, os ônibus que transportam pessoas desesperadas para fora do país e a estrutura ostensiva das forças policiais dão o tom acinzentado da crise. Como contraponto está a capacidade de levitação de Aryan, apresentada em tela como uma dança no ar, ora melhor ora pior coreografada, mas sempre muito bem montada em sua relação de figura-e-fundo, ou seja, na integração de Aryan nos cenários. Assim, o imigrante indesejado sobrevoa a Hungria como um pássaro, ou anjo (como Gabor o vê), que indica uma espécie de salvação para tanta violência e dor.
As escolhas ousadas da direção de Kornél, repleta de tomadas de longa duração e movimentos fluídos de câmeras incorporadas a drones, também permitem ao espectador flutuar pela Hungria, como que apontando que, imersos em tantos tumultos, são apenas os momentos de respiro que nos permitam ver além dos horizontes.
Ver além dos horizontes é justamente o que o diretor parece propor aqui, como tantos outros que, corajosamente, têm tratado das complexas questões que envolvem os fluxos migratórios. Assim, se mesmo numa cinzenta e embrutecida Hungria, um filme de ação-fantástica consegue apontar uma alternativa poética (e também profética, no sentido religioso) para a melhor integração entre povos, pode ser que essa dureza e a intolerância entre nós ainda tenham solução. Nesse sentido, o filme é uma profissão de fé num futuro melhor.