Com uma história emblemática para contar, o diretor Ramin Bahrani pareceu muito mais preocupado com o aspecto visual do seu longa e em deixá-lo o mais simples possível.
Um dos gêneros mais significativos da literatura especulativa é a ficção distópica – ou antiutópica -, onde o autor imagina um futuro, comumente espelhado na realidade em que vive, onde a opressão é a ferramenta de controle da sociedade. Os grandes méritos desta categoria literária, são os de encontrar uma forma alegórica de satirizar os rumos que o corpo social do momento está tomando e buscar evitar que tal destino negativo se concretize. Escritores como George Orwell, Aldous Huxley e Ray Bradbury ficaram marcados para sempre por seus escritos neste escopo, especialmente pela assustadora semelhança de certos aspectos com os tempos atuais. Pensando nisso, espera-se que adaptações cinematográficas de tais obras tragam consigo todo o peso crítico que elas possuem, transformando-se em gatilhos para reflexões e esperança para que as mentes atingidas mudem suas atitudes antes do pior. Mas tudo isso é apenas teoria.
Na prática, a massificação já toma conta da sociedade. A indústria do entretenimento se preocupa cada vez mais em produzir conteúdo de digestão fácil e retorno financeiro alto, sem se preocupar (muito) com a formação de um pensamento crítico no povo. E é justamente nessa realidade, mais atual do que nunca, que se baseia a premissa do livro “Fahrenheit 451“, escrito por Bradbury e adaptado novamente como um longa-metragem homônimo, desta vez escrito e dirigido por Ramin Bahrani (“99 Casas”). Infelizmente, o que poderia ser uma total subversão de perspectivas, acaba se transformando apenas em um thriller com mais ação e menos conteúdo.
A trama é inspirada no futuro distópico da obra original, onde o consumo de livros é reprimido e a inexistência de opinião crítica é incentivada. Para modernizar a narrativa, em que apenas livros físicos eram queimados, qualquer artefato que invoque as memórias das pessoas é proibido – numa clara referência à “1984”, de Orwell, onde “quem controla o passado controla o futuro, e quem controla o presente controla o passado”. Nesse contexto, o bombeiro (aqui o responsável por atear fogo, e não apagá-lo) Guy Montag (Michael B. Jordan, “Pantera Negra”) se vê em um dilema entre o que sempre foi instruído a fazer por seu chefe Beatty (Michael Shannon, “A Forma da Água”) e o que passa a considerar realmente certo.
Enquanto conceito inicial, adaptar a magnum opus de Bradbury seria relativamente fácil, visto o paralelo impressionante que é possível traçar entre aquele futuro previsto em 1953 e a nossa realidade. Sem se preocupar em imaginar os possíveis avanços tecnológicos vindouros, o autor trabalhou de forma brilhante ao perceber o caminho que a sociedade americana trilhava ao venerar a televisão em detrimento dos livros. Baseando-se nisso, esperava-se uma adaptação capaz de traduzir toda a crítica social do escritor, mesclada a uma capa mais atualizada. Porém, o que vemos aqui é um exagero em um destes fatores, contrastado com a ausência do outro.
Bahrani se preocupa demais em deixar o aspecto visual do longa mais futurístico e adaptado ao nosso presente. Óculos de realidade virtual, presença de livros atuais – como “Harry Potter” -, emojis e várias outras adequações foram implementadas, afinal seria praticamente impossível prever essas inovações na década de 1950. Por mais bonito que fique em tela, o caráter praticamente obsessivo que essa modernização toma no decorrer do filme torna-se um problema, com muitos desses aspectos aparecendo sem nenhuma importância real. A única mudança que realmente interfere na trama é a adição de Yuxie (Cindy Katz, “Frances Ha”), inteligência artificial onipresente que remete às teletelas do Grande Irmão, mas que qualquer um pode desligar, transformando todo o perigo de ser pego quebrando a lei, em algo risível. Chega a ser ridículo uma tecnologia tão presente na vida das pessoas não conseguir ser mais eficiente do que uma simples câmera de vigilância.
À medida que a preocupação com a atualização da aparência toma ares de neurose, o grande mote da história original é deixado de lado, tanto no contexto geral da crítica construída por Bradbury, quanto na trama pessoal de Montag. A transformação do protagonista, de um incendiador caótico em um apreciador literário, é extremamente apressada e sem motivações razoáveis. Um drama do passado perpassa algumas vezes em tela, mas não é o suficiente para causar a mudança repentina, muito menos acarretar nas decisões que ele acaba tomando. Aliás, não só ele, mas ninguém na história aparenta saber de fato a importância dos livros, especialmente porque o roteiro decidiu reduzir a participação da literatura na narrativa à meras citações “aleatórias” e convenientes de obras famosas.
Ainda que o longa deixe de abraçar as possibilidades que o cercam, ele apresenta seu valor. Não há como não destacar a qualidade do elenco – especialmente Shannon, cujas feições parecem ser feitas para seu personagem -, além do admirável design de produção e, por que não, na transformação da história em uma algo mais simples. Este último fator pode parecer controverso, mas é fundamental para separar quem gostará ou não dessa adaptação. O tipo de espectador que prefere ficar horas refletindo sobre o que viu na tela do cinema, não é o mesmo que apenas busca um entretenimento acessível para espairecer, embora seja obviamente possível apreciar os dois estilos. Por conta disso, a simplificação da trama não é completamente equivocada, mas trata-se de uma busca por um público diferente dos admiradores do gênero distópico.
Mesmo assim, ao adaptar uma obra que critica diretamente a perda de interesse pela leitura, em decorrência da massificação da mídia televisiva e o emburrecimento da sociedade causado por esse fator, “Fahrenheit 451” surpreende – de forma negativa – por ter uma trama tão superficial e pobre de discussões, tornando-se parte do objeto da crítica de sua própria fonte primordial. Contudo, para o público que deseja um entretenimento com um elenco de qualidade e uma produção acurada, o longa deve corresponder ao tempo investido.