Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 19 de maio de 2018

Cargo (Netflix, 2018): um filme de zumbi com muita carga familiar

Entre qualidades e defeitos, o longa consegue agradar a todos que compram a história, embora não seja o tipo que ficará marcado por muito tempo na memória dos espectadores.

É fato que estamos vivendo um momento sui generis no cinema, especialmente devido à acontecimentos como a instauração do “metaterror”, a possível saturação de filmes de herói e a constante reinvenção do gênero de apocalipse zumbi. Embora ainda nos brinde com algumas pérolas, como “Guerra Mundial Z” (2013) e o mais recente “Invasão Zumbi” (2016), esta última categoria, capaz de mostrar o limite do ser humano das mais diferentes formas, aparenta estar se tornando um tanto repetitiva. “Cargo“, novo longa do gênero trazido pela Netflix, aposta na mescla de elementos consagrados da temática para trazer uma obra muito boa, porém sem ares de novidade.

A trama, baseada em um curta viral finalista do mais prestigiado festival da categoria do mundo, acompanha a história de Andy (Martin Freeman, “Pantera Negra”) e sua bebê Rosie tentando sobreviver a um apocalipse zumbi no interior da Austrália. Após ser infectado, ele tem menos de 48 horas para buscar um possível tratamento e encontrar um lugar seguro para sua filha antes que ele seja impossibilitado de fazê-lo, já que os sintomas da transformação evoluem rapidamente.

O apocalipse zumbi, seja mostrando a origem do evento ou os acontecimentos futuros, é o gênero perfeito para trabalhar com o instinto de sobrevivência humano. Em situações extremas, quando (aparentemente) não seremos julgados pela sociedade, somos apresentados ao melhor e ao pior de cada indivíduo, indo do mais bondoso ao mais perverso. A obra trabalha muito bem nesse ponto, especialmente quando decide utilizar um elenco reduzido, onde cada papel tem seu valor para deixar o público imerso na história. Além disso, somos agraciados com algumas situações peculiares do sentimento humano, capazes de nos fazer refletir, lastimar ou até nos horrorizar.

O longa se propõe a contar uma narrativa mais intimista, onde a importância dos personagens deve ser muito maior para os espectadores do que a busca por explicações, algo comum nesse gênero. Ao optar por não explicar sequer o passado dos protagonistas, o roteiro escrito por Yolanda Ramke (“Na Selva”) se arrisca bastante, dependendo completamente da empatia dos personagens para que o público compre a história. Para a sorte da idealizadora do filme (e do curta), as atuações são muito competentes, especialmente de Martin Freeman, dando toda a afinidade necessária ao papel.

A fotografia é outro ponto executado com maestria, registrando planos muito abertos simplesmente fantásticos, em contraste com planos fechados nas expressões dos personagens, conseguindo, apenas com as imagens, confrontar a imensidão do ambiente e a pequenez dos humanos diante dessa situação. A escolha do interior australiano foi muito feliz, pois o lugar já é conhecido por sua vastidão de ecossistemas, fazendo com que cada tomada ofereça algo novo ao plano de fundo. A trilha sonora também compõe perfeitamente, trazendo os temas certos em absolutamente todos os momentos necessários, assim como utiliza os sons do ambiente de forma excelente. Em uma produção de baixo orçamento, que já conta com uma estrela de Hollywood, é de suma importância que estes dois aspectos sejam executados com competência.

O grande desafio encontrado aqui, era transformar um curta de sete minutos em algo com uma duração plausível para um longa-metragem. Para fazer isso, a roteirista decidiu por inserir vários subplots, buscando inspiração nos mais diversos exemplares do gênero, desde o elemento da contagem regressiva, visto à exaustão em vários exemplos, até o amor paternal, observado recentemente no supracitado sul-coreano. Por mais que isto não necessariamente empobreça a história, a trama acaba ficando sem muita personalidade, pois a única novidade real trazida por ele se resume à tribo indígena, apresentada de forma rápida e sem muitas explicações.

Esse enxerto acabou exigindo muito da montagem do longa, que cometeu vários deslizes, especialmente no primeiro ato. Cenas que trazem momentos de muita tensão são interrompidas abruptamente por situações que não possuem relação direta com o que estávamos assistindo, e isso acaba causando uma especie de distanciamento no ritmo do filme. Por conta disso, a apresentação dos tais nativos também ficou extremamente comprometida, o que foi uma pena, pois o mote deles, mantendo o sinal de esperança caso aquela situação se normalizasse, por si só já renderia um filme de qualidade.

Apesar da necessidade de inserir essas subtramas para compor a história, a medula da obra é a relação de Andy e Rosie. A ligação entre eles e a quantidade de provações que o pai é obrigado a passar – a maioria devido à idade da filha – é de uma sensibilidade ímpar, sendo difícil não torcer pelo desfecho feliz. E essa nossa ânsia para que tudo se resolva, reflete a condição humana de resiliência, buscando a permanência da espécie a todo custo. Chega a ser curioso, se analisarmos essa situação por uma visão macro, porque continuamos sobrevivendo e acreditando num final onde tudo se solucione, mesmo sem a indicação de que isso realmente irá acontecer.

Em resumo, a obra torna-se uma experiência agradável para o público que consegue embarcar na história, algo natural devido à temática da família em busca da sobrevivência. Para quem possui alguma bagagem de filmes de apocalipse zumbi, a narrativa pode se tornar previsível, mas não estraga a possibilidade de reflexões e nem a emocionante sequência final. Mesmo evidenciando erros e não entrando no hall das obras históricas do gênero, o longa certamente vale o tempo investido.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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