Retomando o processo de impeachment ocorrido no Brasil em 2016 sob um olhar detido, o filme destaca uma polarização que divide os brasileiros e suas instituições.
Reunida com políticos internacionais em seu apoio, a presidenta Dilma Rousseff conversa com os convidados com uma leveza que não parece caber no contexto. Atrás dela, numa estante de livros, destaca-se uma obra do escritor tcheco Franz Kafka. Não havia melhor analogia para o documentário de Maria Ramos (“Morro dos Prazeres”), que acompanha os bastidores do processo de impeachment ocorrido no Brasil em 2016.
Com uma câmera acertadamente dedicada a planos fechados, no contracampo dos enquadramentos pouco criativos da televisão, o filme produz uma imersão nas práticas políticas de Brasília durante um dos momentos mais críticos de nossa história recente. Tendo acesso às reuniões estratégicas da bancada aliada à presidenta no Senado, como as senadoras Gleisi Hoffmann e Vanessa Grazziotin, vemos as táticas de resistência e postergação das fases do processo, frente à uma oposição que vinha em bloco pela deposição presidencial (para depois estapear-se pelos espólios da guerra). Daí, podemos extrair uma discussão sobre o sistema político brasileiro, vendo em operação um intricado sistema processual que envolve performances, recursos, apelos, embargos, audições e longas etapas que realmente parecem transpostos do realismo distópico kafkiano.
O prólogo retoma o momento de aceitação da denúncia contra Dilma – acusada que assinar decretos de crédito ao agronegócio sem autorização do Legislativo e atrasar pagamentos a um banco estatal – pelo então presidente da Câmara e hoje detento em Curitiba, Eduardo Cunha. A partir daí, acompanhamos a força-tarefa jurídico-política de defesa da presidenta no Senado, onde a admissibilidade do processo seria votada numa comissão especial, somando consultores jurídicos, políticos – como o senador Lindbergh Farias -, e o advogado de Dilma, José Eduardo Cardozo. Delineiam-se, com isso, os protagonistas da trama, ao invés de ater-se aos líderes dos movimentos sociais pró ou contrários ao impeachment ou à opinião pública, preferindo escrutinar cada passo daqueles que, como soldados no interior das instituições de poder, assumiram a linha de frente nessa batalha e saíram perdedores. O desalento e a decepção com cada etapa perdida, que culminou com a deposição da presidenta em 31 de agosto de 2016, também são retratados em meio às infinitas sessões parlamentares.
Tendo claramente tido mais acesso ao lado pró-Dilma da contenda e assumindo ele próprio (por que não?) uma posição política frente aos acontecimentos que dividiram o Brasil, o documentário de Ramos não deixa, contudo, de agregar as atuações daqueles que estavam do outro lado da trincheira. Destacam-se, assim, as figuras mais caricatas, como a advogada de acusação Janaína Paschoal, que por duas vezes chora ao falar “das criancinhas”, como Pelé fizera após marcar seu milésimo gol; as mais exaltadas, como o senador tucano Aloysio Nunes; ou aquelas que estranham pela inumana inexpressividade, como o relator do processo, o senador Antonio Anastasia. Ademais, algumas “entidades” rondam a narrativa, sem contudo receberem muito destaque, como Michel Temer, mencionado aqui e acolá sem ser mostrado, e o ex-presidente Lula, que aparece brevemente. Tal opção para com personalidades tão importantes no jogo político atual, não deve ser pensado como um erro se entendermos a necessidade de dar destaque àqueles que podem não ocupar o mais alto cargo da pirâmide política, mas ainda assim detém um grande quinhão de poder sobre a República. O foco no Legislativo aqui, sobretudo nos senadores, sem dispensar as quedas de braço com o Judiciário e o Executivo, revela, assim, a correlação de forças complexa que se dá entre os Três Poderes.
Diante dessa arena dinâmica, a montagem é o que faz o filme funcionar, construindo um jogo entre dois polos a partir de ângulos nem sempre vistos pela transmissão da mídia. A captura das nuances gestuais, olhares, sorrisos dúbios e gestos ofensivos entre os políticos revela a etiqueta, por vezes bastante baixa, daquele rito. No campo de batalha midiático das comissões políticas, a atuação pública e o juridiquês se revelam como as armas da contenda. A guerra aqui é retórica, performática, adornada com óculos Prada (como da senadora Hoffmann) e por tons que opõem o vermelho (pró-Dilma) ao azul (pró-impeachment) como as armaduras dos soldados.
“O Processo” captura, assim, um dos momentos mais cruciais de nossa história recente, oferecendo mais um ponto de vista possível a acontecimentos que serão refletidos e relembrados por muitos anos adiante. A volta do filme (e portanto, também parte dele), tem sido realizada uma série de discussões sobre a legalidade do processo, a fundamentação legal da acusação, a garantia de ampla defesa, a influência da mídia e da opinião pública no aceleramento das etapas, as consequências políticas e institucionais do impeachment, etc. O fato consumado pode nos alertar para o além. Como comentou uma produtora do filme no debate de pré-estreia no Rio de Janeiro, o filme é uma espécie de “passado-presente”, mas não deixa de ser também, em ano eleitoral, uma obra do “passado-presente-futuro”.
Ao cinema, parece que se apresenta o desafio de responder às questões atuais de modo cada vez mais imediato. É o tempo da internet que, de tão veloz, às vezes nos informa coisas que ainda nem aconteceram (como as fake news). Mas o tempo do cinema pode ser outro, com seu diferencial de apurar acontecimentos pelos quais a televisão e a internet passam como raios com uma sensibilidade e escrutínio de outras intensidades. Antes de se oporem por causa disso, complementam-se através de filmes como “O Processo”, com seu autodeclarado viés e segurança de linguagem, que mostram que quanto mais pontos de vista tivermos sobre os acontecimentos, melhor será nosso entendimento sobre eles.