O filme reúne excelência em diversos quesitos, como roteiro, direção, atuações, design de produção, fotografia, montagem e trilha sonora. Porém, é a sua moral que merece atenção especial.
À primeira vista, “A Forma da Água” é um filme que mescla dois gêneros: romance e fantasia. Porém, ao enxergar nas entrelinhas, é possível encontrar muito mais, o que justifica os elogios que seguem.
O longa acompanha Elisa (Sally Hawkins, “Blue Jasmine”), uma faxineira muda que trabalha em um laboratório do governo estadunidense no período da Guerra Fria, que acaba se encantando por uma misteriosa criatura anfíbia presa e maltratada no local.
Trata-se de “uma história de amor e perda” da “princesa sem voz”, nas modestas palavras do próprio longa. Ele realmente é um romance fantástico em sentido estrito: a fantasia reside em uma das personagens (o anfíbio), inspirada em “O Monstro da Lagoa Negra” (1954), enquanto o romance é o motor da trama. Para o anfíbio e para Elisa, suas formas são irrelevantes, pois estão interessados em suas essências. O roteiro ressalta que as aparências podem inclusive trair um desavisado – como ocorre no subplot de Giles (Richard Jenkins, “Jack Reacher – O Último Tiro”) –, razão pela qual é indispensável olhar (muito) além das aparências.
Como um “A Bela e a Fera” para adultos, o filme traz reflexões similares às do clássico, mas tem um acervo bem maior de possibilidades. Por exemplo, a delimitação histórico-geográfica fornece um subtexto político que enriquece o plot. É onde entram os ótimos Michael Stuhlbarg (“Me Chame Pelo Seu Nome”) e Michael Shannon (“Animais Noturnos”) – este como o vilão Strickland. Machista com Elisa e racista com Zelda (Octavia Spencer, de “A Cabana”) além de hipócrita (em seu falso moralismo e conhecimento bíblico), mas dedicado como pai de família e como profissional. Um antagonista culturalmente condicionado.
O que há de fascinante na película é o enfoque nos marginalizados (as exceções), todos apresentados com muito carinho. Em tempos modernos e soturnos, preocupar-se com minorias e vulneráveis é uma demonstração de humanidade. A personagem principal, Elisa, é mulher, faxineira e solteira, logo, pronta para a sociedade (EUA, década de 1960) excluir. A ausência de voz é multifuncional: uma metáfora para a sua condição de excluída e uma similaridade entre ela e o anfíbio. Sally Hawkins faz dela uma personagem charmosa, concedendo-a delicadeza, inocência e bondade – todavia, não lhe falta bravura quando necessário. Convencendo no sorriso pueril após um sapateado solitário, tanto quanto na expressão blasé após um xingamento em libras, sua atuação é brilhante.
Seus amigos também são párias da sociedade. Giles é homem, mas já não é mais jovem, é um pintor fracassado e solitário que vai a uma lanchonete ruim apenas para flertar. A falante Zelda é colega de trabalho de Elisa, com um turno a mais em casa aguentando o marido preguiçoso. Ele é gay, ela é negra; ele tem um arco cômico-dramático bem delineado, muito bem conduzido pelo ator; ela é o arquétipo da mulher comum, através de um alívio cômico que a atriz interpreta com facilidade.
A montagem da película é inventiva e discreta, com uso de raccords de som (como o som da cama em uma cena de sexo, que continua no plano seguinte, em tese, sem relação alguma) e visuais (a água da banheira que muda para a água fervendo com ovos). A belíssima fotografia é harmônica com o formidável design de produção, utilizando ostensivamente tons escuros de azul e verde, sem tornar o visual cansativo.
A edição de som cria um ruído totalmente original para o anfíbio, além de sons já conhecidos, como o de uma colher batendo em um ovo. Porém, nesse quesito, a trilha sonora chama muito mais a atenção, tornando-se quase uma personagem à parte. Alexandre Desplat faz um trabalho sublime, compondo músicas instrumentais magníficas que parecem ter um elo de continuidade entre si, sem se repetir (como geralmente ocorre). Das cantadas, a seleção vai do jazz de Glenn Miller ao estilo incomparável de Carmen Miranda, incluindo dois outros clássicos – “You’ll Never Know” e “La Javanaise”.
Guillermo del Toro certamente merece elogios – tanto no roteiro quanto na direção. O cineasta não abre mão da fantasia, todavia, insere ao menos dois momentos subversivos (um deles, muito inesperado), de outros gêneros, sem queda de qualidade. Para as cenas na água (como a do prólogo), o cineasta adotou a técnica dry-for-wet, que existe desde os tempos de Méliès e seu “Viagem à Lua”. A parceria com Doug Jones (“A Colina Escarlate”) ainda é prolífica, mesmo que demande o uso de trajes práticos desconfortáveis (com posterior uso de CGI, na pós-produção). O resultado é impecável, pois o desempenho corporal de Jones é espetacular.
Ao abordar, dentre outros temas, a dicotomia humano versus monstro, “A Forma da Água” não é um romance, mas chega a uma sábia conclusão através de um romance metafórico. Consiste em uma admirável fábula cinematográfica que apresenta uma moral (ou várias) que pode(m) até não ser novidade, mas que ainda não foi(ram) bem aprendida(s). É justamente isso que justifica a sua retomada.