Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 08 de janeiro de 2018

The Square – A Arte da Discórdia (2017): provocando o público através do desconforto

Abordando temáticas presentes na maioria dos debates contemporâneos, a acidez tragicômica do filme não se preocupa em ser reconfortante. A obra é construída para desconstruir conceitos e valores, expondo a podridão humana e social onde quer que possa estar.

Direitos das minorias, “politicamente correto”, divisão de riquezas, marginalização social e preconceito são temas, dentre diversos outros, que estão na pauta contemporânea da maioria dos debates. Há uma corrente bastante radical que enxerga nisso um poço de chatice em um mundo onde não há liberdade para ser franco e “The Square – A Arte da Discórdia” é também extremo, mas possui outra racionalidade.

O protagonista do filme é Christian (Claes Bang, “Além do Desejo”), curador-chefe do X-Royal Museum, divorciado, bom pai das suas filhas e apoiador de boas causas. Sua conduta, sempre intacta, é alterada quando ele é vitimado por um golpe em razão da perda de alguns bens pessoais. Concomitantemente, a condução da sua vida profissional é também abalada pelo evento e deixada de lado, o que gera consequências cada vez mais graves.

Partindo do paradigma rousseauniano, segundo o qual o homem sempre nasce bom e é corrompido pela sociedade, o roteiro do filme encara Christian como um modelo de conduta, não havendo elementos que o desqualifiquem antes do crime do qual é vítima, todavia, a partir desse evento, sua postura gradualmente é afetada, tornando-se moralmente censurável. A reprovação vem dele mesmo, que reconhece agir em desconformidade com os próprios princípios, sendo influenciado, contudo, por fatores sociais externos (a ideia da resposta ao crime, inclusive, não é dele, ao contrário, ele é relutante em aceitar). O protagonista é convencido que faz justiça, abrindo mão de ser “muito sueco” (tudo isso é expresso verbalmente!). Essa premissa filosófica é adotada também com as crianças presentes na película, que manifestam uma agressividade latente, reflexo da impaciência – e dos gritos – dos adultos.

Sem nenhum pudor, o longa se torna um furacão temático, cuja força é tão avassaladora que não se preocupa em trazer algum conforto. Como qualquer outro animal, o homem segue a lei do mais forte, sendo mais forte aquele que tem o dinheiro. Por sua vez, o dinheiro é multidimensional: sua busca é uma necessidade constante; sua ausência é um problema social que inegavelmente gera preconceito; sua presença pode dar benefícios imateriais, como o poder, que, bem utilizado, é sexualmente excitante. Em um mundo de relações efêmeras, cujo enfoque é mais corpóreo que afetivo, a quantidade dessas relações é capaz de gerar a curiosidade alheia, o que não é surpresa considerando a influência da internet. Porém, prevalece nas mídias digitais o interesse nas minorias e nos grupos vulneráveis – em especial negros, mulheres, população LGBT e mendigos –, que sempre geram audiência. Quando é necessário dar publicidade a um objeto, nada melhor que causar impacto e controvérsia, sendo benéfica a polêmica posterior. Afinal, a liberdade de expressão é a garantia para manifestações de todos os tipos, sendo abominável qualquer forma de censura. Ou não?

Ao som constante de “Ave Maria”, na versão de Bobby McFerrin e Yo-Yo Ma, Ruben Östlund (“Força Maior”) escancara o retrocesso do humano: sua involução está presente no texto e no contexto. No texto, há um evidente exagero quantitativo: o escárnio social é aceitável qualitativamente, é a visão do cineasta na sua tragicomédia; entretanto, a ausência de alvo específico, a despeito da acidez crítica, pulveriza a repreensão feita. Por outro lado, o viés provocativo é perfeito para a proposta. No contexto, não apenas Claes Bang expõe bem a deterioração do protagonista, como o próprio diretor é bastante claro em sua proposta. Exemplo é uma cena metalinguística de um intérprete simulando ser um gorila, momento subversivo e forte de uma performance magnética. É difícil não se impressionar com algo tão assustadoramente soberbo – e que por si só já justificou a Palme d’Or em Cannes, em 2017.

Também em outras cenas, Östlund manipula bem o espectador sempre que necessário. É por isso que, na entrevista de Christian, o visual é minimalista e de estética clara, enquanto que, em outro momento da película, há um plano muito simbólico, bastante poluído (literalmente), em que o protagonista está de terno, na chuva, no meio do lixo. A habilidade de gerar tensão não falta ao diretor – como na sequência da entrega das cartas, cuja mise en scène é tão impecável na criação da atmosfera de suspense, que mereceria uma análise pormenorizada –, pontual também nos enquadramentos (enfatizando, por exemplo, as escadas em espiral, vistas de cima, indicando uma realidade rocambolesca).

The Square – A Arte da Discórdia” não é um filme feito para agradar, mas para expor a podridão humana e social onde quer que ela possa estar – e só não está em “The Square”, um utópico “santuário de confiança e cuidado”. É uma obra construída para desconstruir conceitos e valores, para provocar o público através do desconforto. E o faz muito bem.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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