Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Thor: Ragnarok (2017): a primeira comédia assumida da Marvel Studios

Em uma aposta arriscada, a Marvel Studios resolve fechar a trilogia de filmes-solo do Deus do Trovão com uma comédia de ação que rompe de maneira abrupta com o tom dos filmes anteriores do personagem-título, em uma produção que funciona muito bem sozinha, mas que se torna estranha no contexto maior do Universo Compartilhado no qual se insere.

Em dado momento deste “Thor – Ragnarok“, o herói-título (Chris Hemsworth, de “No Coração do Mar”), passa por um tour que remete diretamente à famosa cena do túnel da versão sessentista de “A Fantástica Fábrica de Chocolates” (Mel Stuart, 1971). Para um filme da Marvel Studios referenciar algo tão caoticamente insano quanto esta antológica e lisérgica cena, certamente se trata de um ponto fora da curva para a companhia.

Dirigido por Taika Waititi (“O Que Fazemos nas Sombras”) com uma mistura efetiva de leveza e insanidade, o longa está mais para um soft reboot das aventuras do Deus do Trovão do que para a conclusão de uma trilogia. Sim, os eventos das aparições cinematográficas do protagonista – tanto em seus dois filmes-solo, quanto nos dois “Vingadores” – são referenciados, mas o tom desta nova aventura difere tanto das anteriores que se torna um pouco difícil identificar nela os mesmos rostos conhecidos de outros carnavais, algo que certamente é o maior calcanhar de aquiles da produção.

Dois anos após os eventos de “Vingadores – A Era de Ultron” (Joss Whedon, 2015), Thor ainda lida com as visões sobre a queda iminente do reino de Asgard, o Ragnarok do título. Retornando ao seu lar, rapidamente desmascara seu irmão Loki (Tom Hiddleston, de “A Colina Escarlate”), que havia tomado o lugar de seu pai, Odin (Anthony Hopkins, da série “Westworld”), no trono.

Uma nova briga familiar começa quando a poderosa Hela (Cate Blanchett, de “Cinderela”), primogênita de Odin e deusa da morte, ressurge para refazer Asgard à sua imagem e semelhança. Ao confrontá-la, Thor e Loki acabam sendo jogados no distante mundo gladiatorial de Sakaar, comandado pelo hedonista Grão-mestre (Jeff Goldblum, de “Independence Day – O Ressurgimento”). Para escapar de lá, o Deus do Trovão precisa sobrepujar o campeão local, ninguém menos que o sumido Hulk (Mark Ruffalo, de “Spotlight – Segredos Revelados”).

O roteiro é hábil em mixar várias HQs clássicas da Marvel em uma só narrativa coesa, mas o que se sobressai é o tom de comédia típico dos longas de Taika Waititi, com um humor absolutamente insano que vai desde quebras de expectativas, como a reação de Thor ao reencontrar o Hulk , até gags mais simples, como a reencenação – com direito a ótimas pontas – dos eventos de “Thor – O Mundo Sombrio” (Alan Taylor, 2013) ou a cena em que o Deus do Trovão e seu irmão “pedem ajuda”.

Decupando a narrativa, percebe-se que esse tom cômico foi trazido por Waititi e que qualquer outro diretor poderia facilmente transformar o texto em algo mais sério. Os pontos para isto existem no roteiro, mas o toque do cineasta levou a produção para um rumo bem diferente. Sim, as grandiosas cenas de ação estão todas lá, com destaques para a que abre a produção – com direito a “Immigrant Song” do Led Zeppelin na trilha – e para a luta envolvendo Thor e Hulk. Mas o foco central da produção é o humor, com o drama envolvendo os personagens se tornando secundário.

Para o filme em si, isso deu certo. O humor alucinado combina com o clima quase lisérgico de Sakaar que, por sua vez, espelha os modos de seu governante, interpretado por Jeff Goldblum de maneira única, repleto de maneirismos deveras peculiares. A quase unidimensional Hela de Cate Blanchett – que parece estar se divertindo horrores no papel de uma sádica vilã – também funciona neste modo mais alucinado, embora seja uma pena que ela mal possa contracenar com Hemsworth ou Hiddleston, tendo apenas um desperdiçado Karl Urban (de “Star Trek – Sem Fronteiras”) como seu principal interlocutor.

O visual do longa, amparado nas cores primárias saturadas e no design único do lendário quadrinista Jack Kirby, também combina com a narrativa de locomotiva sem freio de Waititi, com a direção de arte do filme merecendo todos os louros. Até mesmo as batalhas possuem um tom exagerado, desprendido da realidade, sendo bastante divertidas de se assistir, especialmente considerando o nível de poder absurdo que os personagens empregam nelas. E sim, o humor da produção, seja visual ou textual, também funciona, muito por conta do carisma de Hiddleston e Goldblum e da presença e timing cômico de Chris Hemsworth.

Aí entra o grande detalhe. Este não é o primeiro filme do Thor, mas sim uma aventura inserida em um contexto maior, que se fragiliza quando não conseguimos reconhecer neste longa os personagens que acompanhamos há anos. Isso se aplica especialmente a Thor e a Bruce Banner, e não é culpa de Chris Hemsworth ou Mark Ruffalo. Ambos os atores estão ótimos em seus papéis, mas o Thor que vemos em cena chega, em alguns momentos, a beirar a uma paródia daquele que vimos anteriormente, enquanto Banner parece sobre o efeito de alguma substância entorpecente, embora o Hulk de Ruffalo, agora um pouco mais falante, impressione.

Nisso, cenas que mostram o destino de figuras que conhecemos de longa data perdem completamente a força, por puro desinteresse do filme em dar-lhes algum peso dramático. Alguns personagens fazem sentido com o que vimos antes, com o Loki de Tom Hiddleston se adequando perfeitamente ao estilo anárquico que Waititi e Anthony Hopkins mantendo a dignidade de seu Odin (e se saindo maravilhosamente bem quando interpreta Loki imitando seu pai). Até mesmo o Heimdall de Idris Elba (de “A Torre Negra”), que ganhou um pouco mais de destaque aqui, tem um arco mais sério, com o mesmo se aplicando à recém-chegada Valquiria, vivida de maneira efetiva como uma heroína quebrada por Tessa Thompson (de “Creed – Nascido Para Lutar”).

Ao abraçar de vez a comédia e causar uma verdadeira ruptura em relação ao que vimos antes dentro de uma franquia estabelecida, a Marvel Studios expõe uma fragilidade em seu projeto de universo compartilhado. Como um filme isolado, “Thor – Ragnarok” é sim uma aventura extremamente divertida e eficiente, bem ao estilo de seu talentoso diretor. Mas dentro do chamado Universo Cinematográfico Marvel, considerando os longas solo anteriores dos personagens (especialmente o primeiro, comandado com certa pompa por Kenneth Brannagh em 2011), chega perigosamente perto de ser um tapa na cara dos fãs daqueles filmes.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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