A crueza que habita o filme e a forma como temas sensíveis são tratados são os principais destaques do longa. Não suavizar o pai pedófilo ou o marido machista, mostram o quanto o diretor soube levar esses assuntos a sério, focando nos traumas pessoais e usando a ambientação como refúgio.
Até que ponto nosso passado pode interferir na nossa vida? Determinados acontecimentos, por serem tão traumáticos, podem nos afetar (e limitar) por muito tempo. São as lembranças de tudo o que fizemos ao longo da nossa vida que, de certa forma, nos acorrentam, nos impedindo de ir além. E com essa simbologia sobre passado e correntes, “Jogo Perigoso” consegue ser um excelente terror psicológico.
O filme, mais uma adaptação de livro do Stephen King, tem uma trama simples para criar uma narrativa complexa. Jessie (Carla Gugino de “O Espaço Entre Nós”) e Gerald Burlingame (Bruce Greenwood de “Kingsman: O Círculo Dourado”) decidem passar um fim de semana longe da bagunça do dia-a-dia, para tentar melhorar o relacionamento. Numa tentativa de contornar problemas na intimidade do casamento, Gerald prende Jessie com algemas na cama para tornar o sexo mais interessante. Até que uma parada cardíaca muda completamente o jogo.
O diretor do longa, Mike Flanagan (“Ouija: Origem do Mal”), já havia demonstrado anteriormente a habilidade para comandar filmes mais contidos. Mas é em “Jogo Perigoso” que ele consegue se destacar. Boa parte do que vemos em tela se passa apenas na cabeça de Jessie. Eis o desafio: conseguir manter essa “ambientação” sem criar um monólogo cansativo. O filme, nesse ponto, acerta muito bem. E com boas soluções de roteiro.
Numa situação de estresse como a que Jessie se encontra, é natural sermos aconselhados pelas diferentes vozes que habitam nossa mente. Para a protagonista, essa vozes se apresentam como o próprio marido morto, e uma versão sua. Esta versão é o desejo dela por se livrar das algemas. Não apenas as que a prendem à cama, mas as que a conectam com seu passado.
Também fazem parte da trama um cachorro (uma referência óbvia ao Cujo) que torna a permanência no quarto mais angustiante. Assim como uma figura sombria, que num primeiro momento é uma alegoria à morte. E enquanto essa figura assume tal alegoria, Jessie revela seu passado. Em determinada cena, com medo de encarar a morte, Jessie fecha os olhos. Ao abrir, um pouco depois, o que vê é algo muito mais assustador.
“Jogo Perigoso” brinca constantemente com uma fotografia para reforçar os sentimentos da protagonista. E isso acontece principalmente durante o passado. Durante o eclipse (um ligação direta com outra obra de Stephen King), quando Jessie se lembra do pai e o que ele fez com ela, o diretor de fotografia Guilherme Jacobs usa um filtro vermelho que preenche toda a tela e reforça o sentimento de medo e culpa que atormentam a jovem.
Da mesma forma, durante as cenas noturnas no quarto, Jacobs sabe esconder muito bem os cantos, deixando sempre uma sensação de que há algo ou alguém observando Jessie. Mesmo não sendo esses os momentos de maior tensão do filme, eles servem para reforçar o medo que uma pessoa pode sentir ao estar amarrada numa cama sem saber se está sendo observada.
Mas é no passado que está o verdadeiro conflito da protagonista. É dele que ela precisa se libertar, antes de poder, definitivamente, sair da cama. A vergonha pelo que sofreu e pela culpa que tomou para si, são tão pesadas e tão bem construídas, que fica difícil julgá-la por ter escondido isso dentro de si. Porém o segredo apenas pode ser guardado de pessoas que estão fora de sua cabeça. Quando Gerald, já morto na vida real, mas vivo em seus pensamentos, descobre o que aconteceu com ela, passa a usar isso como uma ferramenta para reforçar ainda mais a culpa de Jessie. Mas no fundo, quem está fazendo isso com ela é ela mesma. Da mesma formo como nós insistimos em nos culpar por erros do passado e criamos uma figura para nos julgar.
E são esses os conflitos que fazem deste um thriller tão intenso e tão bem construído. É verdade que o elemento misterioso, que poderia assumir um papel sobrenatural, ou ser apenas mais uma das imaginações e delírios de Jessie, acaba assumindo uma forma real, o que tira um tanto do brilhantismo do filme (uma escolha do diretor dentro das diversas possibilidades que o livro oferece). Mas uma vez que o foco do filme está em retratar o terror do passado, esse pequeno detalhe não prejudica a obra. É um filme pesado, cruel e mais uma boa adaptação do universo literário de Stephen King.