Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A Mulher Mais Odiada dos Estados Unidos (2017): Estado laico já!

Ideologicamente, é passada uma noção do significado do Estado laico, do espaço para a fé alheia (e para o ateísmo) e da necessidade de lutar por um objetivo. Entretanto, na proposta de estudo de personagem, o filme é falho.

Como produtora, Elizabeth Banks achou sua galinha dos ovos de ouro na franquia “A Escolha Perfeita”. É razoável concluir que “A Mulher Mais Odiada do Mundo”, longa original Netflix produzido por ela e por Laura Rister, foi feito muito mais por motivos ideológicos do que monetários. Porque o filme tem muita ideologia.

O longa, baseado em fatos reais, é subdividido em três núcleos. O primeiro se passa a partir da década de 1950, mostrando como a protagonista Madalyn Murray O’Hair militou em favor da causa ateísta, tornando-se odiada por muitos cristãos. O segundo ocorre em 1995, quando ela foi sequestrada, juntamente com seu segundo filho e sua neta. O terceiro se refere à investigação sobre seu paradeiro.

Na vertente ideológica, o filme é convincente. Madalyn foi a criadora da associação Ateus Americanos, além de a responsável (juntamente com seu primeiro filho, Bill Jr.) por ajuizar a ação por força da qual a Suprema Corte (por oito votos a um) retirou a oração matinal e a leitura da Bíblia das escolas, em 1963. Seu objetivo era proteger a 1ª Emenda à Constituição dos EUA, que garante a liberdade de crença e religião. Ela não queria ferir direito alheio ou extirpar a fé cristã, mas afastar sua hierarquia superior, como deve fazer qualquer Estado laico. O cristianismo tem o mesmo valor do judaísmo, do islamismo ou do ateísmo, por exemplo, razão pela qual não teria cabimento os alunos (compulsoriamente) rezarem um “Pai Nosso” antes da aula, um flagrante desrespeito à fé não-cristã. Essa ideia é transmitida no longa de maneira satisfatória, na medida em que tudo começa com uma fala motivacional de seu primogênito (após os dois participarem de um protesto de negros contra a segregação): “Você sempre diz o que há de errado com as pessoas, mas nunca faz nada a respeito. Você só reclama”.

A relação de Madalyn com Bill Jr. é boa apenas até quando este atinge a juventude. Quando adulto, há um misterioso rompimento entre eles, que, a bem da verdade, continua sendo misterioso mesmo quando a película o explica. O filho foi o pontapé inicial para a mãe agir, os dois eram não conformistas juntos, ele era o braço direito dela. “Se algo deixa você muito zangado, você tem que sair e fazer algo a respeito”, diz ele, que não permite que o bullying e a frieza dos professores o afastem da causa abraçada. Porém, as reais motivações da briga não convencem.

Outro erro do roteiro é um escandaloso desnível entre as narrativas. O apanhado histórico da protagonista, que se inicia em 1955, é bem interessante, divertido e cativante, pois a progressão é perceptível e a sequência fática torna o filme mais dinâmico. A interpretação empolgada de Melissa Leo (“Snowden – Herói ou Traidor”) colabora nesse sentido. Já as narrativas de 1995 são muito inferiores. A que se refere à investigação é praticamente estática, contando com interpretações que não agregam (Adam Scott, de “A Vida Secreta de Walter Mitty”, e Brandon Mychal Smith, de “Tirando o Atraso”). Quanto ao sequestro, o ritmo é lento, principalmente comparado ao do pretérito diegético – os coadjuvantes são tímidos, até mesmo o experiente Josh Lucas (“O Resgate”); nem Melissa Leo resolve, com uma péssima maquiagem de envelhecimento.

Ainda, na proposta de estudo de personagem, o filme é falho. No sequestro, o que se vê é uma mulher ranzinza, sarcástica, desbocada e agressiva, inclusive com seu filho mais novo, Garth (Michael Chernus, de “O Jantar”). Não é a mesma Madalyn dos anos 1950, que, embora não fosse amável – o que dificulta a simpatia do público pela protagonista –, não era tão desagradável como pessoa. Por exemplo, quando ela recebe uma carta com excremento, acha a atitude “espirituosa”. Onde foi parar esse bom-humor? Certamente a briga com Bill Jr. a afetou, contudo, existe um hiato desconfortável que o texto não supre.

Mesmo após o término do longa, que tem um viés biográfico, é difícil afirmar quem foi Madalyn Murray O’Hair de verdade (para além dos fatos históricos). No retrato da obra, ela acabou sendo uma figura dúbia: ora se preocupava com os mortos da Guerra do Vietnã, ora fazia um espetáculo eticamente questionável com um pastor; ora acolhia Roy (Smith) como se fosse sua mãe, ora se beneficiava ilicitamente dos ganhos da organização. O próprio filme não se decide sobre a moralidade duvidosa da sua protagonista. Tommy O’Haver (“Um Crime Americano”), diretor e roteirista, não se decide sobre a moralidade duvidosa da sua protagonista. A direção é medíocre – contudo, com um clímax comovente, ele usa de maneira inteligente um baralho como metáfora: no jogo e na vida, Madalyn ganhava de David (Lucas), mas isso mudou com o sequestro.

Fica claro que Madalyn Murray O’Hair não mereceu o rótulo de “mulher mais odiada dos Estados Unidos” como dado por uma revista – embora ela tenha gostado e encarado de maneira saudável (o mesmo se aplica à expressão “filha do Diabo”). Ao contrário, ela foi uma mudança de paradigma em prol da laicidade do seu país, isto é, ela fez um benefício em favor das minorias. Algo que, inclusive, falta no Brasil de hoje. Porém, ela não deixou de ser uma figura controversa e, como pessoa, abordada de maneira insatisfatória no filme.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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