Irrepreensível na forma, o filme é questionável no conteúdo. O som é um espetáculo à parte e a direção é muito eficiente na imersão do público. Porém, falta emoção e originalidade ao longa, que conta com personagens ocas ou unidimensionais.
Poucos cineastas conseguem unir o grande público e a crítica de cinema. Desde “Batman Begins”, de 2005, Christopher Nolan tem obtido êxito nessa proeza, com obras que, se não chegam à unanimidade, arrancam elogios nos dois segmentos. “Dunkirk” é sua nova aposta para continuar e aumentar o sucesso.
O argumento do longa é baseado em um episódio real da Segunda Guerra Mundial, conhecido como “Operação Dínamo”, quando tropas aliadas, encurraladas na praia de Dunquerque, foram evacuadas via mar, sob cobertura aérea e terrestre. Dividindo a narrativa e o vasto elenco em três, o filme se desenvolve como um retrato do evento histórico.
Trata-se de uma obra autoral de Nolan, sua primeira totalmente baseada em fatos reais. Do ponto de vista exclusivamente técnico, provavelmente seja o seu melhor filme na direção: apesar da tendência “spielbergiana” e da fotografia aquém do potencial, é notório o esmero em cada plano, com uma precisão cirúrgica. Nada fora do lugar, como o plano em que são comparadas duas embarcações de tamanhos bem distintos. Por sua vez, o som é um espetáculo à parte, com um resultado sublime. A mixagem é impressionante ao permitir que o espectador possa distinguir tantos ruídos – afinal, o ambiente é bélico. Porém, é a edição de som que assume o protagonismo: o realismo é fenomenal, sendo ímpar a verossimilhança da maresia, dos tiros e dos aviões, dentre outros. Sem contar a trilha sonora de Hans Zimmer, que dispensa elogios.
O grande trunfo de Nolan aqui é a eficientíssima imersão do público. Evidentemente, sendo real a premissa, isso fica mais fácil; todavia, o mérito reside na construção da atmosfera de guerra, colocando o espectador como mais uma pessoa encurralada, como as personagens da trama estão. Por exemplo, quando um corpo é carregado na areia, a câmera balança; quando ele chega a uma superfície mais estável, ela fica fixa – exatamente como se o público estivesse junto à ação. A partir do prólogo sem falas, mas que acelera com (e como) as batidas de um coração (que inclusive se ouve), o diretor abre a porta para uma experiência imersiva estonteante.
“Dunkirk”, contudo, não é impecável graças ao próprio Nolan – como diretor e como roteirista. O filme tem um elenco extenso, mas com muitos nomes subaproveitados e desperdiçados, como Tom Hardy (de “O Regresso”), Mark Rylance (de “Ponte dos Espiões”) e Cillian Murphy (de “No Coração do Mar”). Enquanto isso, nomes pouco ou nada conhecidos receberam maior espaço – no geral, sem comprometer. Exceção é Kenneth Branagh (de “Cinderela”), ator consagrado que brilha com o pouco material que tem. Ainda assim, o roteiro é um descalabro na construção das personagens, moldando personalidades ocas ou unidimensionais, sobre quem pouco se sabe e com quem pouco se importa. Assim, a possibilidade de algumas personagens morrerem se torna indiferente e surgem suaves incoerências – como a conduta de Peter (Tom Glynn-Carney, estreante no cinema) na segunda metade.
O problema de lidar com tantos personagens consiste em duas faces da mesma moeda: não dar o mesmo espaço a todos, verticalizando uns em detrimento de outros. O texto não faz isso, na verdade, não verticaliza praticamente em personagem nenhuma, tornando-se superficial nessa perspectiva – são muitas personagens, muitas delas sem nome e sem histórico algum. Mesmo considerando a proposta de retratar um evento histórico, é necessário dar dramaticidade a ele, caso contrário, o gênero do filme deveria ser o documentário. Como se importar com Farrier (Tom Hardy) sem saber quem ele é? Como torcer por Dawson (Mark Rylance) sem saber nada além do seu altruísmo? Trata-se, pois, de um filme sem emoção, ainda que muitíssimo bem produzido. Ainda, em termos de trama, o roteiro se resume a uma narrativa de heróis e covardes, o que é ínsito a quase qualquer filme de guerra – ou seja, o plot não é muito original.
Ora, fazer um drama de guerra com emoção Roman Polanski já conseguiu com “O Pianista” – e emoção Nolan já colocou em obra pretérita (vide “Interestelar”). Dramas de guerra originais também existem vários, como o recente “Até o Último Homem”, de Mel Gibson – e de originalidade Nolan também entende (vide “A Origem”). Portanto, apesar da obra ser irrepreensível na forma, é questionável em seu conteúdo quando se percebe o vazio de emoção. Existe no script, há que se mencionar, um dilema moral: vale a pena o sacrifício de uma pessoa para que um grupo inteiro se salve? A ideia é semelhante ao desafio proposto pelo Coringa em “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, para os cidadãos de Gotham explodirem o navio dos criminosos e se salvarem, ou o contrário. É uma maior profundidade no roteiro, sem dúvida. Mas Christopher Nolan pode mais. Ele ainda não atingiu o seu máximo.