O terceiro filme dirigido por Selton Mello apresenta mais uma vez sua marca: o sentimento de veracidade em tudo, desde diálogos à estética. O filme é a adaptação para os cinemas do livro de Antonio Skármeta.
Na trama de “O Filme da Minha Vida“, terceira investida de Selton Mello como diretor, acompanhamos um trecho da vida do jovem Tony (Johnny Massaro, “A Frente Fria que a Chuva Traz“) quando este decide retornar a Remanso, Serra Gaúcha, sua cidade natal. Ao chegar, ele descobre que Nicolas (Vincent Cassel, “Cisne Negro“), seu pai, voltou para França, seu país de origem. Tony se torna professor ao mesmo tempo que se vê em meio aos conflitos e inexperiências da recente vida adulta.
Selton Mello, desde sua estreia na função de diretor em “Feliz Natal” (2008), e passando pelo fabuloso “O Palhaço” (2011), apresenta uma sinceridade que concede à história perfeitos contornos de realismo. Aqui, fortemente aliado a um esmero técnico, a assinatura se repetiu e evoluiu. Isso é visível desde o som, quando esse opta por “vazar” o real tilintar dos dentes ao mastigar (algo que nem prestamos mais atenção) e, mais ainda, quando os integrantes do elenco apresentam seus textos sem pressa alguma, dando ao espectador a possibilidade de entrar cada vez mais naquela história. Por vezes, inclusive, o diálogo nem se fez necessário para a cena funcionar.
Pressa é algo que “O Filme da Minha Vida” não tem. Por saber exatamente onde quer chegar e por acreditar muito no seu ponto de virada, dá muito tempo para os personagens se mostrarem. Sabemos muito, inclusive, daqueles que não tem tanto tempo de tela. Afinal, ao passo que o filme acompanha Tony (Johnny Massaro) em sua jornada, a história apresenta suficiente conhecimento a respeito de todos que estão próximos ao protagonista, quer seja sua mãe, seu pai, o amigo do seu pai, seu aluno (divertido personagem obcecado em perder a virgindade) ou sua companheira de trama, a Luna, vivida pela talentosa Bruna Linzmeyer, dona de beleza vintage e perfeita para o papel tanto por esse atributo quanto, mais ainda, por entregar a leveza e sensualidade que o papel pediu – numa sequência que se passa em uma festa, a repetida olhada de ombro carrega consigo uma sutileza admirável. Johnny Massaro como Tony vai muito bem também, apresentando um personagem que muda em pequenos detalhes ao longo de toda a história.
Tempo é algo relevante aqui. Apesar de não ser a principal discussão, pois trata-se primordialmente de problemas não resolvidos (ou mal resolvidos), é tão importante para o todo quanto esse conflito do protagonista. O trem representa o tempo que não pára e o ir e vir que precisamos fazer para resolvermos (logo) certas situações que a vida nos dá. Sem resolver esses pontos, fica difícil seguir e ser quem estamos preparados para ser. O tempo é aquele que permanece seguindo num ritmo previsível e artificial (Luna até fala sobre isso ao olhar um relógio), mas ainda assim difícil de emparelhar (!). Hora você chega cedo demais e tem que esperar o trem sair, Hora o trem te leva para outro lugar e você não vê os efeitos do tempo no local que você deixou. Numa cena específica, a única que Rolando Boldrin (fabuloso resgate feito pelo diretor), Johnny Massaro e o próprio Selton Mello contracenam, esse assunto torna-se expositivo.
Além dos já elogiados Bruna e Johnny, o trabalho de casting se mostrou igualmente competente na escalação dos demais atores. Vincent Cassel, apesar do pouquíssimo tempo de tela, é bem utilizado por conta do natural sotaque franco-brasileiro ou por ser um genuíno “gringo”, que se destaca como tal face a todos os demais do elenco. Selton Mello se escala para um papel também curto, mas importante e dono de veia cômica utilizada sob medida – o texto que apresenta a diferença entre o porco e o homem teria que sair da boca e trejeitos daquele que um dia nos entregou Chicó (“O Auto da Compadecida”) e Benjamin (“O Palhaço”). Como dito antes, escalar Rolando Boldrin como, literalmente, o maquinista daquela história é, para além de um acerto, uma belíssima homenagem.
A fotografia de Walter Carvalho optou por constantemente utilizar o primeiríssimo plano, estilo que conversa diretamente com as escolhas do roteiro de entregar seus detalhes com muita paciência. Esse plano, junto com o plano detalhe, também muito observado aqui, causa sentimento de ausência a partir do enfoque. Entretanto, os planos gerais, ou os mais abertos, surgem com parcimônia quando a história avança, abrindo cada vez mais o seu escopo. Os planos gerais também atuam a fim de valorizar as lindas locações, assim como os close-ups (geralmente aliados ao efeito bokeh) conversam diretamente com uma personagem que é fotógrafa e em vários momentos as tomadas estáticas valorizam o mise-en-scène, a movimentação teatral dos atores e a competente direção de arte, dando tempo para que analisemos com calma toda organização.
Ainda na cinematografia, a fim de nos entregar a sensação de filme antigo, de película e de projeção em rolo, a paleta de cores é quase toda em tons pasteis, nada cítrico, apenas destacando o vermelho pin-up quando o filme precisa do tom romântico e, muito delicadamente, do erótico. O filtro vintage (amarelo, laranja e rosa, todos claros) e o chuvisco sutil e proposital somam-se pra apresentar a estética de época, além de corroborar com o assunto de tempo passado e tempo passando que a trama levanta.
O filme seria impecável se não fosse pelo incomodo atraso na apresentação do conflito principal, algumas cenas aparentemente dubladas (mesmo onde a captação do áudio poderia ser feita ao natural) e por algumas (poucas) transições abruptas na montagem, sendo que a história pede calma e leveza em vez da rigidez que o corte seco transparece.
Aliado ao tom episódico, cada minuto de projeção de “O Filme da Minha Vida” demonstra-se útil para entendermos os problemas, as decisões, os personagens (principais e secundários) e a vida simplória naquela cidade pacata e dona de charme marcante, duas características que podem ser literalmente atribuídas também a esse filme, dono de final forte e eficiente.