Ao usar do canibalismo para mostrar o quão agressiva são as mudanças que as pessoas passam durante a juventude, a diretora consegue evitar clichês tanto em narrativa dramática quanto de terror
Em tempos de filmes de terror que apelam para os jumpscare (cenas nas quais o susto é motivado por um acontecimento repentino) para tentar forçar uma reação do público, filmes que nos obrigam a confrontar o terror de frente, tendo como apoio a própria trama, devem ser valorizados. “RAW” (no Brasil chega como “Grave“), filme que ganhou fama por fazer algumas pessoas desmaiarem durante uma exibição no festival de Toronto, está nessa categoria.
A trama acompanha Justine (Garance Marillier, de “Boys on Film 9: Youth in Trouble”), uma jovem vegetariana que irá começar a estudar veterinária na mesma faculdade que seus pais estudaram e onde sua irmã mais velha estuda. Num universo que se difere por completo de seu próprio mundo, introspectivo, Justine começa a se descobrir, porém nem todas as descobertas são fáceis, ou confortáveis.
O filme tem a direção e roteiro da novata Julia Ducournau. Em seu primeiro longa, a diretora consegue transmitir toda a sensação de autodescoberta pela qual a maioria de nós passa na faculdade. A quebra entre a infância/juventude e a vida universitária e a forma como nos tornamos adultos é, para muitos, um rito. É o momento em que iremos definir o que seremos para o resto de nossas vidas e quando mostramos ao mundo quem nós realmente somos. Nesse contexto, o canibalismo é uma metáfora que ilustra o quão terrível podem ser nossas descobertas.
A expectativa dos primeiros dias de aula, o trote, os grupos da faculdade, o filme inteiro nos é apresentado em camadas de realidade que cena após cena vão se encaixando e formando o cenário complexo pelo qual Justine está passando. Sua irmã, Alexia (Ella Rumpf, de “Tiger Girl”), faz uma interessante ponte entre cada uma das descobertas que a protagonista vive, ao mesmo tempo é a ela que cabe a função, mesmo que involuntária, de despertar quem Justine realmente é.
Para uma diretora inexperiente, “RAW” é conduzido com maestria. Ducournau consegue intercalar belas panorâmicas com planos fechados, quase claustrofóbicos. A intimidade da protagonista é sentida, o que pode causar desconforto em alguns momentos. E, apesar do canibalismo, são em momentos do dia-a-dia que o público pode sentir o incômodo. Com exceção de duas ou três cenas (uma bem explorada, é preciso ressaltar), o filme não se utiliza do gore para chocar. A realidade vivida pela protagonista já é dura o suficiente para isso. O canibalismo é apenas uma liberdade poética.
E para não cair no grotesco pelo grotesco, Ducournau conseguiu amarrar muito bem o roteiro. Nada no filme está ali de graça, o que justifica até a mais pesada das cenas. O descobrimento de algo novo, principalmente quando se é jovem, pode ser extremamente prazeroso por quem vive a descoberta, mas pode parecer terrível para quem observa. Saber quais são nossos limites não é fácil, ainda mais quando se falta vivência. Mais um ponto para a diretora, que soube carregar tudo isso de forma equilibrada.
“RAW” consegue entregar uma proposta interessante sem ser cafona ou cult. Apresenta uma construção criativa e tensa. A cada cena, a diretora não se apressa em mostrar o que está acontecendo. Cada detalhe é bem digerido por quem assiste, ao mesmo tempo que nada é entregue de forma gratuita. Mesmo não sendo um filme suave, é uma temática interessante, onde a novidade está na forma como a narrativa é construída e apresentada.