Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 22 de junho de 2017

O Círculo (2017): Seria melhor se isso fosse muito “Black Mirror”

Filme lida com temas relevantes do nosso mundo de modo covarde e incoerente, desperdiçando questionamentos importantes e um ótimo elenco.

O conceito de distopias com sociedades totalitárias se aprofundou na literatura no século XX, algo que reverberou nas obras audiovisuais. Dentre elas podemos citar “1984”, “Admirável Mundo Novo”, “Fahrenheit 451”, “V de Vingança” e até mesmo o relativamente recente “Jogos Vorazes”. Jean-Luc Godard brincou com o tema no clássico longa “Alphaville” e George Lucas surgiu para a ficção científica com ele em “THX-1138”. Considerando o ambiente politicamente (e tecnologicamente) carregado de hoje e que é trabalho da boa ficção espelhar nossa realidade, novas investidas no assunto não são surpresa.

Surge então “O Círculo”, livro de 2013 escrito por Dave Eggers que mostra um presente muito parecido com o nosso tornando-se um embrião para uma distopia dessas graças à tecnologias não muito diferentes daquelas hoje disponíveis. Infelizmente sua adaptação homônima para o cinema, escrita pelo próprio Eggers em colaboração com o diretor James Ponsoldt, se mostra uma obra perdida e incoerente, não sabendo exatamente sobre o que está falando.

Na trama, a jovem Mae (Emma Watson, de “As Vantagens de Ser Invisível”) consegue um emprego no Círculo, conglomerado da internet similar ao Google e ao Facebook, que lida com tudo relacionado ao mundo virtual, desde redes sociais à vídeos online. Aos poucos, a moça percebe que os planos do Círculo vão muito além de interligar pessoas ao redor do mundo, em um experimento que ultrapassa as barreiras da ética e da privacidade em escala global.

Ponsoldt vem de trabalhos bem sucedidos como “Smashed – De Volta à Realidade”, “O Espetacular Agora” e “O Fim da Turnê”, longas de baixo orçamento nos quais sua linguagem rápida casou perfeitamente com os carismáticos elencos ali escalados. O cineasta reuniu aqui atores talentosos e que possuem fãs de diversas franquias, mantendo o perfil já estabelecido de seus colaboradores e também chamando a atenção do público jovem para o longa.

O problema é que, nos trabalhos anteriores do diretor/roteirista, havia um foco nos personagens e na trama ali contada, enquanto o que temos nesta versão cinematográfica de “O Círculo” é uma atenção exagerada na confusa e incoerente mensagem que se quer passar, atropelando o desenvolvimento dos personagens e até mesmo a própria lógica da história ali contada.

Quando lidamos com histórias sobre distopias, quase sempre descobrimos aqueles mundos através dos olhos de seus protagonistas e é através deles que encontramos as grandes questões apresentadas naquelas narrativas e aqui não é diferente. No entanto, Mae reage de maneira quase que passiva durante boa parte da produção às ações do Círculo (a obrigatoriedade do uso de redes sociais e os implantes de chips de rastreamento nos ossos de crianças, por exemplo), com o choque inicial que essas “inovações” trazem sendo rapidamente substituídos por mera apatia ou até mesmo aceitação daquilo, sem nenhum pensamento crítico sobre o que lhe é apresentado.

Não há um crescendo sobre as opiniões da protagonista, positivas ou negativas, quanto ao estado de vigilância voluntário que se desenvolve ao seu redor e mesmo quando ocorre uma ruptura para qualquer ponto de vista, esta acontece de maneira forçada. Emma Watson faz o que pode para gerar alguma empatia por sua personagem, mas se torna difícil compreender Mae quando ela muda de opinião sobre os grandes temas do filme quase que do nada.

E o longa é todo sobre ela. Por mais que John Boyega (“Star Wars – O Despertar da Força”), Karen Gillan (“Guardiões da Galáxia Vol. 2”), Ellar Coltrane (“Boyhood”) e o saudoso Bill Paxton (“Aliens – O Resgate”) dividam a tela com Watson, eles estão lá apenas para servirem à protagonista. Quebrando completamente a regra do “mostre, não diga”, os demais personagens surgem para Mae com conflitos quase aleatórios, sem preparação nenhum para estes ou mesmo qualquer tipo de resolução aceitável.

O Mercer de Ellar Coltrane é o melhor exemplo disso. Em tese, ele seria o contraponto do “mundo virtual” de Mae, o jovem que adora viver aventuras “lá fora”, mas acaba soando sempre como um irritante ermitão pós-adolescente justamente por não haver nenhum desenvolvimento em seu discurso ou no linchamento virtual que ele diz sofrer – que é apenas mencionado, nunca mostrado, o que se torna particularmente problemático no final do segundo ato.

Até mesmo Tom Hanks (“Negócio das Arábias”), que vive uma mistura de Steve Jobs com Mark Zuckerberg e político carismático, passa em brancas nuvens durante toda a projeção e não desperta qualquer reação do público além da curiosidade de ver Tom Hanks fazendo uma versão menos ética dos homens que simbolizam a Apple e o Facebook. Aliás, isso resume o tratamento dado aos atores durante o filme. Eles não estão ali para atuar como seus personagens, tendo em vista que o roteiro praticamente os ignora, mas meramente para atrair o fandom de suas respectivas franquias.

No terço final do longa, este desiste de vez de contar uma história coerente, joga pra escanteio qualquer tipo desenvolvimento de personagem e termina em um “textão” digno de uma crônica de segunda de algum blog hipster excessivamente pretensioso, em um clímax marcado pela absoluta falta de consequências. Parece que houve um ataque de covardia coletiva por parte dos realizadores, que não quiseram entregar um final mais coerente com o que havia sido mostrado até ali e resolveram terminar de qualquer jeito.

“O Círculo” joga fora a oportunidade de usar o cinemão popular para realmente discutir temas relevantes como a falta de privacidade no mundo das redes sociais, a compulsividade do compartilhar ou mesmo as mudanças de comportamento humanas em um ambiente onde sempre há um Grande Irmão nos assistindo. Melhor ficar em casa e assistir um episódio de “Black Mirror” mesmo.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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