Documentário que mistura as linhas inspiradas da narrativa de seu protagonista com um panorama histórico do racismo americano, o filme revive, junto a outros do Oscar 2017, o debate sobre o preconceito racial.
“Eu Não Sou Seu Negro”, talvez o melhor filme presente no Oscar 2017, é um documentário dirigido pelo haitiano Raoul Peck (“O Jovem Karl Marx”) a partir do manuscrito não finalizado de James Arthur Baldwin (1924-1987), Remember This House, projeto ambicioso que visava contar a história da segregação dos EUA a partir da figura de três ativistas assassinados num curto período de tempo: Martin Luther King Jr., Malcolm X e Medgar Evers.
Misturando um sobrevôo histórico pelos EUA com o lirismo dos escritos de Baldwin – narrados de forma inspirada por Samuel L. Jackson (“Kong, a Ilha da Caveira”) –, o realizador consegue construir um documentário não convencional que funde o presente e o passado americanos numa narrativa ao mesmo tempo poética e de protesto.
Reconhecido pelo público alternativo por outras produções menores, como Lumumba (2000), Peck finalmente dá o salto merecido e esperado às grandes plateias, com uma obra que ressoa não apenas no contexto contemporâneo dos EUA, como encontra analogias em diversos cantos do mundo, como no Brasil. Felizmente, o realizador não sente a necessidade de ser mais didático nas interações que constrói entre as páginas de Baldwin e as imagens em tela. A interpretação sobre a história de racismo nos EUA fica por nossa conta, mas é fácil assimilar a acentuada crítica social quando se mostra, por exemplo, uma série de propagandas comerciais que retratam os negros em posição caricatural ou de subalternidade.
Mas é Baldwin a força motriz desse documentário. A própria imagem de divulgação da obra é inteligente ao colocá-lo, com seus olhos vibrantes e sorriso largo, ao lado das icônicas figuras desse movimento, como Martin e Malcolm. Se até agora sua figura estivesse em segundo plano nesse tumultuado período histórico, “Eu Não Sou Seu Negro” coloca-o no mesmo patamar de seus contemporâneos, ainda que destaque suas idiossincrasias e a forma bastante diferente como assumiu a luta pelos direitos civis.
É que Baldwin não marchou até Selma, como Luther King, tampouco falava às multidões pregando a ação direta, como Malcolm. Ainda mais importante: Baldwin conseguiu passar dos 40 anos, os outros não. O escritor era um intelectual público, que debatia com uma prosa inteligente e performática sobre a segregação racial diante de grandes entrevistadores, como Dick Cavett (de onde sai, num momento muito desconfortável, a inferência ao ótimo título desse filme).
Figura estranha dentro de seu contexto histórico, não se encaixando em nenhum lugar específico no movimento negro americano (ele próprio afirma isso), certamente não foi à toa que o realizador escolheu debruçar-se sobre um intelectual negro nesse filme que perscruta a formação do preconceito racial americano, de seu período mais intenso – o da segregação oficial e limitação dos direitos civis até os anos 60 –, até os episódios recentes, como o de Ferguson, em 2014, quando o jovem Michael Brown, de 19 anos, foi assassinado por um policial branco no estado do Missouri.
À certa altura de sua narrativa, Baldwin confessa seu perfeito desinteresse pelos EUA: “É triste perceber que aquele lugar em que você se localiza e sobre o qual se identifica não criou nenhum sistema em que caiba você” – e isso aponta algumas das razões pelas quais sua figura e obra não se tornaram tão grandes quanto outras de sua geração, num país que coage ao nacionalismo.
Mergulhando na narrativa post-mortem dos três ativistas sobre os quais se concentra, Baldwin abarca, até onde conseguiu escrever para seu livro, o apagamento do massacre indígena na formação americana (“fizemos um massacre virar lenda”, escreve), ao mesmo tempo que dedica-se a recuperar os passos de seus protagonistas. Assim, embrenha-se numa jornada penosa cuja estrada é o racismo americano, dos evangélicos sulistas que dizem que Deus perdoa “assassinos e criminosos, mas está furioso com a miscigenação”, até os ideólogos que apontam que a “mistura de raças é comunismo”.
Dono de uma narrativa rebuscada e dramática, Baldwin vai construindo, assim, teses poderosas sobre o racialismo americano, como a de destruição do senso de realidade do subjugado racial e a formação cognitiva do preconceito. Ele próprio investigado pelo FBI por causa de seus livros, que versaram sobre as relações interétnicas, teve seu nome indexado à lista de segurança nacional e foi espezinhado em sua vida privada e intimidade sexual.
Com o excelente filme de Peck, essa figura ganha novo ânimo e, talvez, até novas traduções e edições. Ainda mais importante, o debate sempre urgente sobre o racismo e a violência permanece vivo em mais esse filme que nos mostra que assistir é sempre apenas o começo.