A maior crítica que pode ser feita a esta versão live-action da franquia original pelo mangá de Masamune Shirow é o fato dela não ser tão revolucionária quanto suas predecessoras, embora seja um filme extremamente competente.
O mangá “Ghost in the Shell” foi criada em 89 pelo mangaká Masamune Shirow. A franquia viralizou graças ao clássico longa animado de Mamoru Oshii lançado em 1995 (com uma continuação em 2004), uma série em anime que durou duas temporadas e uma minissérie mais recente, intitulada “Arise”. Ou seja, é um universo que já foi mostrado em diferentes mídias e por diversos autores, tendo ainda influenciado todas as obras com temática cyberpunk desde seu lançamento, vide “Matrix” (Irmãs Wachoski, 1999).
Quando Rupert Sanders (de “Branca de Neve e o Caçador”) foi anunciado como diretor desta versão live-action, com Scarlett Johansson (“Lucy”) no papel da Major, as reações de ultraje por parte de alguns fãs por whitewashing foram tão pesadas que nem mesmo as declarações de apoio por parte do próprio Masamune Shirow foram suficientes para apaziguar a situação. Afortunadamente, esta versão hollywoodiana deste clássico japonês é extremamente respeitosa para com suas predecessoras, deixando a polêmica em segundo plano.
Na trama, em um futuro onde aprimoramentos cibernéticos nos seres humanos são corriqueiros, conhecemos a Major, uma jovem cujo cérebro fora implantado em um corpo artificial pela Corporação Hanka após um ataque terrorista. Agora líder de campo da Seção 9, equipe responsável por lidar com ameaças tecnológicas, a Major e seu grupo acabam tendo de lidar com Kuze (Michael Pitt, de “Boardwalk Empire”), criminoso que parece ter uma vendetta pessoal contra a Hanka, obrigando a Major a refletir sobre sua própria existência como uma ferramenta da empresa durante a caçada.
O roteiro de William Wheeler (de “Rainha de Katwe”) e Jamie Moss (“Os Reis da Rua”) aproveita elementos de praticamente todas as encarnações anteriores de “GitS”, mas os questionamentos mais filosóficos, certamente os grandes diferenciais da versão de 1995 e de sua continuação, foram um tanto minorados aqui, certamente visando uma audiência mais mainstream ocidental.
As próprias referências do longa são mais ocidentalizadas, com as obras literárias “Neuromancer” (William Gibson, 1984) e “Frankenstein” (Mary Shelley, 1818) sendo as mais reconhecíveis. Isso também se reflete na trilha sonora de Clint Mansell, que se aproxima mais do trabalho de Vangelis em “Blade Runner” (Ridley Scott, 1982) do que daquele feito por Kenji Kawai no anime de 1995 (a clássica “Making of a Cyborg” surge apenas nos créditos finais da produção, embora a cena onde a música tocou no anime original seja reproduzida fielmente aqui).
Os conflitos de identidade e realidade foram simplificados e centralizados na Major, tornando-a o ponto central do plot. Apesar da Major ter o nome de Mira Killian, sua versão Motoko Kusanagi está bastante viva na performance de Scarlett Johansson, surgindo de formas deveras inteligentes dentro da narrativa. Palmas para o cuidado da atriz com os detalhes físicos de sua personagem, dotada aqui de uma movimentação pesada e artificial, mostrando alguém que parece estranhar a própria pele sintética. No entanto, o aspecto sexual, justamente uma das formas que a Major tinha de explorar sua humanidade, é quase expurgado desta versão.
No entanto, permanece lá o carinho platônico entre a Major e seu parceiro, o gentil grandalhão Batou (Pilou Asbæk, de “Game of Thrones”), uma das poucas relações interpessoais mais íntimas da protagonista, importante para dar a Johansson alguém com quem ela possa se abrir. Ressalte-se ainda um vulnerável momento entre Johansson e a veterana atriz japonesa Kaori Momoi (“Memórias de uma Gueixa”), encaixado de maneira meio trôpega na narrativa, mas salvo pelo bom trabalho de interpretação das duas.
Michael Pitt cria um antagonista que funciona como o espelho da Major. Kuze é uma figura inacabada, um cérebro humano inserido em um protótipo imperfeito. As formas como Pitt interage com o ambiente respeita as limitações físicas de seu personagem, em uma composição vocal e física bem interessante.
Entretanto, a rivalidade entre Kuze e a Hanko acaba caindo em diversos clichês, especialmente por conta da companhia ser representada por um personagem tão exagerado como Cutter (Peter Ferdinando, de “No Topo do Poder”), um executivo que estaria em casa na OCP do “Robocop” de 1987. Mais afortunada foi Juliette Binoche (“Godzilla”) na criação da sua Dra. Ouelet, cientista que é a figura materna da Major, com Binoche e Johansson tendo oportunidade de desenvolver uma relação mais complexa entre suas personagens.
Outro destaque do elenco é o lendário ator e diretor Takeshi Kitano (“Brother”) como o estóico chefe Aramaki da Seção 9. Falando apenas em japonês, Kitano estabelece facilmente sua autoridade perante os demais atores apenas com sua forte presença em tela, roubando a cena sem esforço toda vez que surge em cena.
Visualmente, o filme é irrepreensível. Houve todo um cuidado por parte de Rupert Sanders em criar um mundo que abrangesse o detalhismo típico da obra de Masamune Shirow, mas que, ao mesmo tempo, dotasse está versão de uma identidade própria.
A paleta de cores é mais clara, mas há uma característica de pesadelo claustrofóbica naquele universo a medida que a história se aprofunda nele, especialmente nas cenas que mostram áreas menos favorecidas. O espartano alojamento da Major mostra o vazio de sua personalidade e contrasta com um apartamento dotado de maior calor humano que a personagem visita em dado momento ou com a opulência dos escritórios da Hanka.
Cenas como a luta na água e o embate com o Spider-bot são clássicas para os fãs e revisitadas aqui de um modo diferente, com Sanders se saindo muito bem na criação de setpieces interessantes, mesmo que longe de serem memoráveis. De fato, esse é maior defeito do filme: ele não é tão icônico como a animação de 1995 e certamente não terá o mesmo impacto na cultura pop que aquele longa, mas não deixa de ser uma produção competente e que honra a franquia da qual faz parte.