Com um suspense psicológico digno de aplausos, o diretor mostra que trajetórias e acaso podem, juntos, conceber grandes personagens.
No ano de 1999, um diretor novato tomou o mundo de assalto com um thriller arrepiante que, de tão bom, até concorreu ao Oscar de melhor filme. Esse longa era “O Sexto Sentido” e este cineasta se chama M. Night Shyamalan. Na época, houve até quem o comparasse com o grande mestre do suspense Alfred Hitchcock e muito se esperava de sua próxima obra. Foi com muita surpresa que o diretor apresentou, em 2000, uma ideia muito a frente de seu tempo: um filme de super-herói realista. “Corpo Fechado”, assim como o longa anterior, era um drama sobre o lugar das pessoas no mundo, com um plot twist tão inacreditável quanto outrem. No entanto, aparentemente, o público não estava preparado para o filme e o relegou a uma categoria menor. O esqueceu. Dezessete anos depois, Shyamalan volta ao tema que lhe é tão caro em “Fragmentado”. Afinal, qual é o nosso lugar no mundo?
Kevin é um homem portador de um transtorno dissociativo de identidade, que convive com 23 personalidades diferentes. Para complicar, uma de suas personalidades rapta três adolescentes na frente de um Shopping. Não convém contar mais sobre a trama, a fim de não estragar a experiência de desfrutá-la, porém conhecer um pouco mais sobre essa “doença” da vida real, talvez seja algo que a enriqueça ainda mais. Basta saber que as diferentes personalidades do portador, mesmo que dentro de um corpo só, podem possuir características diferentes, como ser mais forte, mais inteligente, e até mesmo manifestar uma doença que não se apresente nas outras.
Shyamalan mostra que o tempo e o fracasso de algumas de suas obras mais recentes como “Depois da Terra” e “O Último Mestre do Ar”, não lhe afetaram em nada e entrega um trabalho, no mínimo, incrível. Digno de seu quarteto de ouro do início de carreira: os já citados “Sexto Sentido” e “Corpo Fechado” e os assustadores “A Vila” e “Os Sinais”, seja no roteiro ou seja na direção, o cineasta se esbalda no que existe de melhor no quesito suspense. Com câmeras fechadas mostrando o sufocamento da clausura e travelings alucinantes por corredores intermináveis, ele climatiza as cenas de maneira a acreditarmos que nós também estamos presos lá com as garotas. Isso quando ele não resolve brincar com as percepções e filmar cada personalidade de maneiras diferentes. Como, por exemplo, o inocente Hedwig, que é mostrado normalmente por cima, para demonstrar como ele é pequeno. Ou Dennis, que possui TOC e é mostrado sempre de forma simétrica… e por aí vai.
E que elenco! A veterana atriz Betty Buckley (“Fim dos Tempos”), empresta veracidade e doçura para a Dr. Karen Fletcher, que é a psicoterapeuta de Kevin, seu alicerce com o mundo real e quem nos guia pela turbulenta história do rapaz. Anya Taylor-Joy, apesar de muito nova, já havia se mostrado uma atriz muito talentosa no surpreendente “A Bruxa”, compõe uma personagem difícil, cheia de camadas e dona de um sofrimento encravado em sua alma. Sem James McAvoy (“X-Men: Apocalipse”), o filme dificilmente existiria do jeito que ele é. Ele interpreta com maestria algumas das personalidades de Kevin e de uma maneira única. Cada nuance, cada olhar, cada voz, até a maneira de respirar, foi pensada para dar vida independente a cada uma delas. Em algumas cenas, é assustador saber diferenciar as identidades se modificando ali na sua frente, somente por um gesto ou um suspiro do ator.
É muito dificil falar de “Fragmentado” sem comprometer o intenso e gratificante prazer de descobri-lo pouco a pouco ao assisti-lo. Se existe alguma dúvida de que Shyamalan voltou a sua melhor forma, “Fragmentado” já basta. Porém a emoção recai mesmo, mais uma vez, naquilo em que o diretor se apegou em toda a sua carreira e que nunca abandonou: a busca incessante pela humanidade de seus personagens. Sejam eles monstros, fantasmas ou super-heróis do mundo real.