Diretor irlandês atinge sua maturidade cinematográfica e, com muita música e uma energia vibrante no melhor estilo "Quase Famosos" (2000), parece saber mais do que nunca os sentimentos que quer transmitir.
John Carney é um cineasta interessante. Nascido em Dublin, na Irlanda, ele tem uma ligação forte e explícita com a música, sempre colocando-a de forma vívida em suas obras. Não à toa, seus dois trabalhos mais recentes antes deste “Sing Street: Música e Sonho”, “Mesmo se Nada Der Certo” (2013) e “Apenas Uma Vez” (2007), também tem na música um elemento importantíssimo para o andar da história, quase como um personagem à parte na trama. Como ainda não conheci nenhum ser humano que particularmente desgoste de canções, e Carney certamente possui um vasto conhecimento na área, seus filmes logo despertam uma simpatia imediata. Mas não é só isso.
O diretor irlandês, que também sempre roteiriza suas histórias, tem uma capacidade diferenciada de criar personagens carismáticos e facilmente identificáveis. Seja o rapaz ruivo que toca nas ruas de Dublin por uns trocados e parece viver bem consigo mesmo dessa forma, a moça que se muda para a cidade grande em busca de seus sonhos, ou o garoto ‘oitentista’ com problemas de família e estudando em uma escola rígida que vê na música a única saída para escapar das adversidades e conquistar a garota mais velha e descolada pela qual é apaixonado. Boas referências musicais, musicalidade, personagens gostáveis e segurança do realizador na condução da narrativa; parece difícil algo dar errado em um filme de John Carney tendo essa fórmula como princípio base – e por “fórmula” entenda-se tudo menos uma classificação pejorativa para seu estilo.
Algo neste “Sing Street: Música e Sonho”, no entanto, o torna diferente dos demais trabalhos do cineasta. Com o charme brega dos anos 80 e um romance aparentemente impossível, há uma energia vibrante no melhor estilo “Quase Famosos” (2000) no ar, embora a trama e os caminhos de cada obra difiram consideravelmente entre si. Aqui, acompanhamos a vida de Conor Lawlor (Ferdia Walsh-Peelo), um jovem de 15 anos que se vê obrigado a mudar para uma escola com um regime mais rígido devido a uma crise financeira de seus pais, que estão à beira do divórcio. Lá, sofrendo bullying e quase sem amigos, ele decide ir atrás de companheiros para montar uma banda e impressionar a misteriosa garota mais velha (Raphina, interpretada por Lucy Boynton) pela qual se sente atraído.
É admirável como Carney consegue transmitir tanta vivacidade com sua história, mesmo ambientando-a em uma Dublin cinzenta e melancólica e em um contexto repleto de dificuldades para seus personagens. Recheada de tons marrons e cinzas, a fotografia de responsabilidade de Yaron Orbach – que trabalhou com o diretor irlandês no seu último trabalho -, reforça essas características e não contribui para que esse clima pessimista seja revertido. O que o faz, na verdade, são mesmo as músicas contagiantes e a simplicidade e inocência da história, que por mais que pareça clichê à primeira vista, parece ter consciência disso e brinca a todo momento com o fato.
De cabeça, consigo lembrar de pelo menos quatro peças memoráveis: “Drive it Like You Stole it”, “Up”, a tocante “To Find You” e a divertidíssima “The Riddle of the Model”, a primeira na qual a banda formada pelos garotos, e tendo na paixão de Conor a sua mulher modelo, se arrisca em gravar um videoclipe – o que, em se tratando de anos 80, acaba se tornando uma esquete hilária. Todas elas são encaixadas com perfeição na trama, dialogando com eficiência com o que está se passando em tela e potencializando seus efeitos dramáticos, tanto nas letras em si, quanto nos momentos em que são tocadas. Além disso, várias referências musicais da época são inseridas sutilmente no roteiro, não apenas como curiosidade para os fãs, mas como fator de influência na personalidade e estilo dos personagens. Não sou um especialista na área, mas há menções que vão de bandas típicas irlandesas até a mundialmente famosa A-Ha, o que certamente deve agradar os espectadores mais vidrados no tema e moldam as tendências visuais e musicais da banda e especialmente de seu líder.
Na trama em si, não há grandes reviravoltas e os arcos seguem mais ou menos a trajetória esperada, o que não necessariamente é algo ruim. Como já dito, o filme parece ter consciência de suas “breguices”, procurando encaixá-las de forma divertida na narrativa, quase como uma homenagem à década na qual a história se passa. Em determinado momento, por exemplo, Conor afirma que quer tocar na festa de formatura de seu colégio “como em De Volta para o Futuro”, um clássico dos anos 1980 e que permanece vivo e atual até os dias de hoje. A conjuntura que cerca os personagens principais já é dramática o suficiente, e as camadas densas da obra ficam por conta dela, ilustrada em um emocionante desabafo do irmão mais velho (Brendan, interpretado por Jack Reynor) do protagonista, que o ajuda e incentiva em seus primeiros passos como músico, mas que em dada cena “explode” injustamente com o caçula devido à desestruturação familiar pela qual estão passando.
Simples em sua proposta e em sua trama e recheado de atores competentes (alguns deles, inclusive, que possuem carreiras de músicos paralelas a de intérprete, como é o caso do próprio Walsh-Peelo), mais uma vez se torna difícil não gostar de um trabalho assinado por John Carney. Aqui, mesmo que sem a grife de um Mark Ruffalo, Keira Knightley ou de um Adam Levine, o diretor irlandês parece ter atingido sua maturidade cinematográfica e, mais do que nunca, está no controle da situação e sabe a mensagem e os sentimentos que quer transmitir. Sempre com muita música e um ritmo contagiante, claro.