Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A 13ª Emenda (2016): muito mais que doze anos de escravidão

Documentário original da Netflix reconstitui a história e reúne nomes respeitados para discutir a segregação racial do sistema prisional americano.

Cento e cinquenta anos de opressão resumidos em cem minutos” – é assim que descreve seu filme a diretora Ava DuVernay, nome em ascensão em Hollywood por obras que têm destacado o protagonismo negro, apresentando narrativas que centralizam figuras desse grupo étnico, como “Selma” (2014), e trazendo maior diversidade às produções do cinema americano. Com “A 13ª Emenda” a diretora explora, com uma linguagem documental bastante dinâmica, a correlação entre o sistema prisional e a cultura racista dos EUA, remontando ao período da escravidão americana iniciado no século XVII.

A perspectiva de que a estrutura carcerária se formou dos espólios do sistema escravocrata é uma tese defendida já há algum tempo pela historiografia acadêmica e militância negra, tanto nos EUA como em outros países que viveram as mazelas desse período histórico, como o Brasil. Nessa linha, o documentário de DuVernay, escrito em parceria com seu tradicional colaborador Spencer Averick (também coautor de “Selma”), não se constrange em embarcar nessa tese e se constituir de modo a reforça-la. Mais preocupada em desvelar de forma sucinta, dinâmica e eficiente o novelo histórico que relaciona o processo escravagista ao sistema prisional (e consequentemente ao aparato policial que o mantém), DuVernay não trará os contra factuais que poderiam garantir a imparcialidade de sua narrativa, ainda assim, não deixa de oferecer espaço às opiniões de importantes figuras que podem divergir dessa tese.

Tendo como ponto de partida a emenda constitucional de 1865 que estabeleceu a proibição das formas de escravidão nos EUA, exceto para casos de condenação criminal, o filme estrutura-se num formato documental tradicional, indo e vindo por relatos de quase quarenta entrevistados, enquanto segue uma cronologia de episódios marcantes na formação de uma cultura racista naquele país, como o lançamento do filme de D.W. Griffith “O Nascimento de uma Nação” (1915) e a guerra às drogas dos governos Nixon e Reagan, além de muitas imagens de arquivo de violência aos negros. Os nomes em cena foram entrevistados ao longo de dois anos, como relatado por DuVernay em entrevista à Oprah Winfrey, também está disponível na Netflix e que serve de complemento a quem se interesse pelos pormenores dessa produção. Na conversa, a diretora justifica pontos de destaque de seu filme, como final em aberto e a possibilidade oferecida pelo canal on demand de transformar o trabalho numa minissérie de quatro ou cinco episódios, dado o excesso de material coletado, ideia deixada de lado, segundo ela, justamente pela aspereza do tema.

Entre acadêmicos e políticos, celebridades e vítimas da indústria prisional, a diretora conversa com personalidades históricas da militância negra, como a filósofa Ângela Davis, e políticos tradicionalmente inamistosos à causa, como o republicano Newt Gingrich. Assim, o filme se faz pela voz de peritos, ou seja, especialistas (acadêmicos ou não) do assunto, agregados como peças de um quebra-cabeças que forma um todo inteligível. Enquanto um colabora com uma perspectiva mais jurídica, outro apresenta mais dados históricos; enquanto uma serve de voz narrativa de um caso específico, outro entrevistado adota um tom mais confessional, fazendo um mea culpa diante da câmera. Os cenários, lindos e muito bem escolhidos, são sempre de galpões abandonados, um lobby de hotel ou diante de um paredão de cimento rústico, escolhas justificadas pela diretora pela busca de materiais que denotassem o trabalho, ou seja, a construção da América pelas mãos das gerações de negros oprimidos.

Para quebrar com o tradicionalismo das “cabeças falantes” na linguagem documental e evitar barrigas na narrativa, a diretora é inteligente ao inserir músicas que somam à discussão ao mesmo tempo que dinamizam o ritmo da trama. Canções como “Work Song”, pela voz de Nina Simone; “Chains”, do The Roots; e até a música final, “Letter to the Free”, do rapper Common, também servem para agregar ao debate a dimensão emocional de um problema que, pelas mãos de um realizador menos influenciado pelo tema, poderia transformar-se numa cartilha didática e monótona.

Fugindo desse ascetismo, algumas das passagens trazidas pelo filme são verdadeiramente chocantes, como a do jovem Kalief Browder que se matou ao 22 anos depois de finalmente ser liberado de uma sentença que cumprira por três anos por um crime não cometido. Contudo, a narrativa não deixa também de ser técnica, oferecendo dados – como, por exemplo, de que os EUA concentram 25% da população carcerária do mundo – que expõem em larga escala a dimensão do problema. Assim, oferece uma perspectiva bastante completa e bem embasada sobre um tema bastante complexo, sem esquecer-se da dimensão emocional que foca as vidas individuais afetadas por esse sistema problemático.

Do filme racista de Griffith ao pessimismo diante do novo presidente dos EUA, do racismo histórico aos negros à nova onda de xenofobia contra imigrantes e refugiados, Ava DuVernay oferece com a competência técnica que já provou ser detentora por suas obras anteriores um dos documentários mais relevantes dos últimos anos, que tem chacoalhado os EUA em debates sobre sua estrutura prisional, a influência de empresas privadas na construção de uma indústria penal e o racismo das instituições jurídicas e policiais. Indicado ao Oscar de melhor documentário, o filme soma-se a outra excelente produção análoga, “Eu não sou seu negro”, do cineasta haitiano Raoul Peck, que juntos mostram a emergência desse tema tão antigo e, ainda assim, tão mal realizado em nossa reflexão coletiva.

O sistema carcerário é um monstro que devora a vida de milhares de jovens negros americanos” – diz uma das especialistas entrevistadas. Durante toda a obra, sempre que mencionado por algum dos entrevistados, a palavra “criminal” (criminoso) toma a tela sobre um fundo preto. É a declaração de DuVernay sobre a criminalização de seu povo, e nada mais importante do que ouvir essa afirmação por meio da potente voz narrativa de uma diretora mulher e negra. O grito que esse filme emite destaca as ausências e invisibilidades, bem como o silenciamento e a falta de protagonismo, mas também começa, paulatinamente, a tomar a centralidade do espaço de fala de temas que lhe dizem respeito. É justamente por isso que “A 13ª emenda” sai das mãos de DuVernay, nascida e criada no bairro negro de Compton, Califórnia, pois assim como diz seu filme, “nenhum branco sabe o que é ser negro nos EUA”.

Vinícius Volcof
@volcof

Compartilhe

Saiba mais sobre