Existem três modos de enxergar esse "Cinquenta Tons Mais Escuros", segundo filme da trilogia iniciada em "Cinquenta Tons de Cinza", baseado no livro homônimo de E.L. James. Ele pode ser visto como um drama erótico fracassado, uma comedia involuntária bem-sucedida ou como uma obra perigosa que justifica e romantiza o comportamento machista e possessivo.
Embora o elenco principal desta continuação não tenha se modificado, nem a diretora do original, Sam Taylor-Johnson ou a roteirista Kelly Marcel retornaram para este “Cinquenta Tons Mais Escuros”. O comando da produção passou para o diretor James Foley (da série “House of Cards”) e o guião foi assinado por Niall Leonard, marido da própria criadora da franquia, E.L. James, que, mesmo trabalhando como roteirista desde 1987, assina aqui seu primeiro trabalho para cinema. Ou seja, não é à toa que por várias vezes a produção mais pareça um filme ruim feito para TV, mesmo que isso não explique a inabilidade do diretor em entregar aqui ao menos uma establishing shot razoável.
Na trama, alguns meses após os eventos do capítulo anterior, Anastasia (Dakota Johnson) e Christian (Jamie Dornan) reatam seu enlace, com ele tentando explicar para a moça os motivos do seu sadismo na cama. Enquanto isso, Anastasia é perseguida por uma ex-submissa de Christian (Bella Heathcote, de “O Demônio de Neon”), confronta Elena (Kim Basinger,”Sentinela“), mulher que iniciou Christian no mundo do BDSM e, finalmente, tem de encarar uma situação de assédio por parte de seu chefe, Jack Hyde (Eric Johnson, de “Smallville”).
Colocando deste modo, até parece que muita coisa acontece durante a projeção, mas não é bem assim. O longa tem 118 minutos que passam sem engatar nenhuma trama. Os conflitos são apresentados, desenvolvidos e resolvidos (uso esses termos no sentido amplo) em um espaço de tempo tão curto que simplesmente não há tempo para o público notar a existência destes, quanto mais ter qualquer tipo de catarse com suas resoluções – um incidente envolvendo um helicóptero marca bem esse problema.
Chega a ser um insulto ver Kim Basinger desperdiçada em uma participação que dura, literalmente, quatro cenas. Sim, AQUELA Kim Basinger, que estrelou “9 1/2 Semanas de Amor”, um thriller erótico seminal, tem apenas cinco minutos em tela, sendo que sua Elena, do ponto de vista narrativo, deveria estar lá para nós falar mais sobre Christian e representar um obstáculo real para o “romance” do casal central. O ápice da participação da atriz no filme é quando jogam um drinque na sua cara e lhe dão um tapa, em uma sequência digna de uma paródia de novela mexicana.
E o que dizer de Jack Hyde. É difícil não imaginar E.L. James se sentindo extremamente inteligente ao referenciar “O Médico e o Monstro” de maneira tão “sutil”. O “vilão” interpretado por Eric Johnson se transforma de chefe interessado em estuprador louco em menos de duas cenas. Não há nenhuma nuance na interpretação canastrona de Johnson, ele simplesmente se transforma.
Detalhe que o filme usa Hyde para justificar a postura de Christian em tratar Anastasia como sua propriedade. Ao impedir que a moça vá em uma importante viagem de negócios com o chefe, ele não está exercendo seu domínio de “macho alfa” ou defendendo sua propriedade, mas sim protegendo Anastasia. E isso sendo que na única cena na qual Christian e Hyde dividem a tela, eles se apresentam como “O Namorado” e “O Chefe”, praticamente se digladiando para ver quem tem mais controle sobre Anastasia.
E nisso temos a pobre Leila, vivida por Bella Heathcote. A moça, além de óbvios problemas mentais (causados por conta do seu relacionamento anterior com Christian), também possui habilidades ninja. Sim, pois só isso explica ela conseguir invadir o fortificado condomínio de Grey sem ser notada pela equipe de seguranças do bilionário ou entrar no apartamento de Anastasia para ver o casal dormindo e sair sem levantar suspeitas.
Todos esses pontos – o chefe assediador, o relacionamento com uma mulher mais velha e experiente ou os danos causados pelo estilo de vida de Christian às suas submissas – seriam plots que poderiam fazer a relação entre Christian e Anastasia soar mais interessante e dariam aos atores material dramático com que trabalhar. Nenhum dos três funciona e, enquanto Dakota Johnson até que se esforça, Jamie Dornan novamente nos brinda com uma performance digna do Cigano Igor.
No entanto, o problema que mais chama a atenção neste desastre é a estrutura adotada por Foley e Leonard, que se resume a diálogo brega/cena ruim de sexo com música da moda/diálogo brega. O longa aposta tudo nos encontros sexuais entre Anastasia e Grey, filmados de um modo tão pobre que faria corar o mais tosco dos filmes exibidos no extinto Cine Privé da Rede Bandeirantes. As cenas de BDSM não causam frisson ou excitação, mas evocam a mais profunda vergonha alheia.
Não há química (física ou dramática) entre Johnson e Dornan, com o filme se tornando moderadamente divertido apenas por conta da péssima entrega dos diálogos horrorosos proferidos no decorrer da narrativa (“Você me ensinou a f****, mas ela me ensinou a amar!”). Até mesmo as tentativas de mostrar as raízes dos problemas de Christian são apresentadas de uma forma tão cafona que se torna impossível levar a sério a trama, apesar do filme nos implorar para fazê-lo.
No início do longa, Anastasia é mostrada como uma jovem adulta independente e que conseguiu escapar de sair de um relacionamento nocivo. Ao longo da projeção, o público se vê forçado a torcer para que ela volte para um homem que não tem nenhum senso de privacidade e cuja noção de romantismo se mistura com a de possessão.
Por mais que ultrapasse frequentemente e involuntariamente a fronteira do hilariante em sua breguice, “Cinquenta Tons Mais Escuros” é um filme retrógrado e perigosíssimo, que, ao mesmo tempo em que cita Jane Austen e Charlotte Brontë, reforça e romantiza uma cultura de dominação masculina e a noção de que o lugar da mulher é servindo o seu macho provedor.
“Eu não sou um pássaro; e nenhuma rede me prende; eu sou um ser humano livre com uma vontade independente”.
Charlotte Brontë, em “Jane Eyre”