Com pouco mais de uma hora de duração, longa é eficiente ao contar uma história singela sobre os sentimentos mais profundos do ser humano, do abandono e da necessidade de amar e se sentir amado
Uma das coisas que mais me fascina em um filme, seja de qual gênero for, é a capacidade que este pode ter em lhe contar uma grande história do modo mais simples possível. O tal do storytelling: aproveitar os elementos que se tem à disposição para que tudo convirja em uma única direção, coerente, coesa, contribuindo narrativamente para o conto. O que mais me encantou nesta animação francesa, “Minha Vida de Abobrinha”, nesse sentido, foi justamente a forma como a obra consegue transmitir uma história tão densa, dramática e de sentimentos tão profundos, de uma maneira sensível, singela e acessível para todos os públicos.
Icare, que prefere ser chamado por Abobrinha, é um garoto de 9 anos e cabelos azulados que, após a morte de sua mãe, uma mulher alcóolatra e irresponsável, se vê acompanhado de um policial a caminho de um orfanato. Lá, ele conhece outros meninos e meninas em situação semelhante à sua e tem que se adaptar aos costumes do local – o que pode soar cruel à primeira vista, mas não tanto quando nos é mostrado que as pessoas que administram o estabelecimento são carinhosas, gentis e atenciosas, muito mais do que sua mãe jamais o foi. É aí que reside mais uma grandeza da obra.
Realizado todo em stop motion (técnica que utiliza massa de modelar real para criar os personagens e ambientes) o filme em nenhum momento força conflitos, mérito do roteiro de Céline Sciamma, com colaborações de Germano Zullo, do diretor Claude Barras e de Morgan Navarro, a partir do romance de Gilles Paris. Mesmo no primeiro ato, quando somos apresentados à vida triste do garoto protagonista, acontece de forma natural e sem apoiar-se em caricaturas ou resoluções fáceis. Aqui, embora o contexto seja todo triste e melancólico, as questões a serem desenvolvidas são muito mais internas do que externas, isto é, não existem vilões malvados ou mocinhos heróicos, muito menos um ambiente hostil, como já vimos em dezenas de outras obras de mesma estrutura temática.
Dessa forma, é instigante, por exemplo, quando Abobrinha chega ao orfanato e se depara com Simon, um menino de expressões “emburradas” e cabelos ruivos que parecem ilustrar sua personalidade explosiva, uma espécie de “chefe da gangue” das crianças, e parte para o confronto com o recém-chegado, mas logo em seguida é desconstruído como um jovem que faz uso de tal máscara “vilanesca” apenas para esconder os seus próprios sentimentos de abandono e carência.
Por falar em cores e cabelos, aliás, é interessante notar como o diretor Claude Barras utiliza esses elementos não só para ilustrar a individualidade de cada um dos personagens, mas também o contexto que os cerca. Assim, no início, quando vemos o menino de cabelos azuis empinando uma pipa colorida com o desenho do falecido pai, e vários outros papeis de cores vivas espalhados em um quarto pequeno, cinza e cheio de falhas em sua estrutura, logo percebemos se tratar de uma criança com sonhos e um ideal lúdico, mas que se vê presa em um ambiente infeliz e solitário.
Essa abordagem pode ser percebida durante todos os pouco mais de 60 minutos de projeção, de características físicas externas ilustrando dramas internos, sem que uma palavra precise ser dita. Seja nos já citados Simon e Abobrinha, na garotinha silenciosa de tiques nervosos que utiliza os cabelos louros para esconder um dos olhos, como que, atormentada por incidentes anteriores, evitar uma aproximação social dos demais, ou na menina que chega ao orfanato depois de Abobrinha, Camille, que vira sua amiga e possui um passado tão dramático quanto os outros, o que logo é percebido por Simon: “Ela sabe. Dá pra ver nos olhos dela”, ele diz em determinado momento, sobre a ciência da jovem acerca dos fatos que a levaram até ali. Olhos esses que, seja dela ou dos outros personagens, sempre arregalados e extremamente expressivos, despertam uma identificação imediata no espectador.
Embora as circunstâncias em volta das crianças sejam dramáticas, só nós do lado de cá da tela temos a exata dimensão de tudo aquilo. Afinal, como crianças que são, elas mais possuem os sentimentos do que têm a capacidade de saber entende-los e explica-los. Assim, o clima no orfanato é menos pesado do que se poderia supor quando apenas olha-se a sinopse do longa: todos os personagens possuem mini arcos, há momentos divertidos e a trama caminha em um bom ritmo em meio a tudo isso, sem pesar excessivamente a mão para nenhum dos lados.
“Minha Vida de Abobrinha” é um filme sobre os sentimentos mais profundos do ser humano, do abandono, da necessidade de amar e se sentir amado, mas visto sob o olhar inocente de crianças em uma situação extrema. Uma história singela e construída caprichosamente nos detalhes, do garoto sonhador de cabelos azulados ao ninho vazio de passarinhos na árvore em frente ao seu dormitório, que trata seus personagens com o carinho e a sensibilidade necessária, nos envolvendo emocionalmente e nos levando junto de suas jornadas pessoais.
Eventualmente, o ninho acaba sendo preenchido, por mais que de maneiras e por pessoas inesperadas.