Embora a direção não seja criativa, o irretocável roteiro é interpretado com maestria pelo elenco sublime, em um show de atuação de Denzel Washington e Viola Davis.
Uma cerca pode servir para separar dois terrenos. Pode também limitar uma área ou evitar uma fuga do local. Ou ainda servir como metáfora para situações análogas a essas. É por isso que “Fences” (“cercas”, em inglês) mereceria um título brasileiro mais fiel que o genérico “Um Limite Entre Nós”. Enfim, o show vale o ingresso.
O filme conta a história de Troy (Denzel Washington, “Chamas da Vingança”), homem frustrado por não ter se tornado jogador profissional de beisebol e infeliz por trabalhar como catador de lixo. Produto de uma trajetória cultivada na insatisfação, Troy tem dificuldades em se relacionar com a família, exceto, talvez, com a esposa Rose (Viola Davis, “Histórias Cruzadas“), a quem ele credita o melhor que tem em sua vida. Porém, o descontentamento guardado aumenta até implodir, gerando consequências que afetam todos ao redor de Troy.
O longa é uma adaptação cinematográfica da homônima peça da Broadway, escrita em 1983 por August Wilson, cujo texto não foi muito alterado (por ele mesmo) na transposição para os cinemas – tampouco o elenco, ao menos na versão teatral de 2010. No teatro, foram vários os prêmios (Pulitzer, Tony Awards etc.), em especial para o autor e para Washington e Davis. Trata-se de uma joia sem igual, capitaneada pelo astro de “Dia de Treinamento” (coprodutor, diretor e protagonista) para ser levada ao grande público.
A obra tem duas balizas: o roteiro e o elenco. Como quem escreveu o script para os cinemas é o mentor original, o texto é irretocável. Do ponto de vista estrutural, a expressão “ao redor de Troy” é a síntese da lógica de “Fences”: ele não é apenas personagem principal, mas fio condutor; a interação de Troy com seus familiares e com o amigo Bono (Stephen Henderson, “Tão Forte e Tão Perto”) sempre gira em torno do próprio Troy, ainda que o arco dramático seja de outra personagem. Através de longos diálogos (elemento fundamental, até mesmo em razão da origem teatral) que mais parecem banais conversas de bar, as relações afetivas e familiares paulatinamente desmoronam sobre Troy.
O conteúdo da narrativa também depende de Troy, que guia as temáticas abordadas – tais como: racismo institucional, enfrentamento do status quo e realização pessoal. Ele é claramente uma pessoa amarga, cujo desgosto com a vida faz com que ele seja o pai e o marido que é – nada exemplar, para dizer o mínimo. A frustração gerou nele feridas que jamais cicatrizaram, fazendo com que ele, em última análise, interpretasse o vínculo familiar como algo fundado na responsabilidade e no dever (tal como ocorre no trabalho), não como uma conexão fundada no afeto. É possível entendê-lo melhor, todavia, quando ele relata um episódio em que enfrentou o próprio pai. O monólogo, como diversas outras cenas, só recebe vivacidade graças à naturalidade com que Denzel Washington interpreta o papel. Nesse sentido, o ator – acima do peso, o que é coerente, já que ele não é um herói de ação – vive Troy com fluidez, imprimindo dramaticidade nos monólogos, afetando o tom em razão do álcool ingerido e representando com uma linguagem corporal eloquente. Até mesmo uma coçada no traseiro faz sentido, dando realismo à personagem.
Igualmente admirável é o trabalho de Viola Davis, estupenda desde o ótimo “Dúvida”, encantando o público com atuações espetaculares. Em “Fences”, ela executa um forte e potente monólogo que entra no rol dos mais impactantes da história do cinema, simplesmente maravilhoso. Não obstante, no decorrer da narrativa e principalmente após a cena mencionada, a atriz conduz Rose com a genialidade que somente ela seria capaz de atingir. As risadas, o sorriso, o olhar fraterno, as mãos sempre ocupadas: tudo comprova que Viola Davis é uma das maiores atrizes da atualidade.
No elenco de apoio, todos estão muito bem, mas merece menção Mykelti Williamson (“Uma Noite de Crime 3″) como Gabriel, irmão de Troy em uma delicada condição psicológica. É graças à sua interpretação cuidadosa que “Gabe” se torna uma personagem cuja ingenuidade é tocante, comovendo pela sensibilidade. Como pilar da obra, de todo modo, o elenco inteiro é excelente.
Roteiro e elenco sensacionais, direção, nem tanto. Não que Denzel Washington seja um diretor ruim, mas é visível que os enquadramentos são acadêmicos – melhor seria filmar com takes longos, dando realismo às cenas – e o uso da trilha sonora é ineficiente (reduz-se praticamente a elipses). A montagem exagera nos cortes, o que é incompatível com um filme baseado em diálogos longos. Ainda, o uso do cenário é simplista: quase todas as cenas são no quintal onde serão construídas as cercas que Rose deseja, enquanto a casa, cuja decoração é rica, é pouco utilizada (uma desvalorização da direção de arte).
Por fim, o que as cercas representam? Seu significado é plural e cada personagem encara de uma forma diferente. A alegoria é brilhante, o que justifica o título original, em detrimento do brasileiro. O acerto no desfecho lírico é o encerramento que a fita merece, após uma sessão em que o espectador acompanha um roteiro soberbo interpretado por um excelente elenco.