Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

A Criada (2016): uma fábula erótica coreana

Uma direção de arte impecável e atuações poderosas conduzidas por um diretor experiente constroem mais um filme coreano que tem cativado públicos ao redor do mundo.

Diretor consagrado por sucessos internacionais, como “Oldboy” (2003) e “Lady Vingança” (2005), Chan-wook Park marca sua produção por histórias poderosas, representações gráficas da violência e requintada direção artística. Ao lado de alguns de seus contemporâneos, como Kim-ki Duk (“Pietá”) e Joon-ho Bong (“O Hospedeiro”), tem sido responsável pela popularização da cultura sul-coreana no cinema, em tempos em que as produções orientais vem agradando o público e a crítica ao redor do mundo.

“A Criada” é a adaptação do premiado romance inglês “Fingersmith” (“Na Ponta dos Dedos”, no Brasil), de Sarah Waters. Relocalizado pelo roteiro na Coréia do Sul dos anos 30, sob ocupação japonesa, a história acompanha o contato entre a camareira Sook-Hee (a estreante em longas Tae-ri Kim) e a nobre lady Hideko (Min-hee Kim, de “Certo Agora, Errado Antes”), herdeira japonesa que vive isolada no campo sob os auspícios de seu tio dominador. Servindo de disfarce a um plano dantesco do falso conde Fujiwara (Jung-woo Ha, de “O Caçador”), que planeja casar-se com a nobre, roubar seus espólios e interná-la num hospício, a jovem camareira se vê no núcleo de uma história cheia de reviravoltas e mentiras, enquanto vive uma tórrida paixão que desafia as leis vigentes.

Pela sinopse, é fácil notar o tom dramático que o roteiro adota. Escrito pelo diretor em parceria com Seo-kyeong Jeong, grande parte da narrativa tem uma dimensão operística, onde os personagens se revezam em solilóquios individuais que revelam seus objetivos, sejam eles dignos ou torpes. Por vezes, a narrativa parece assumir até mesmo um tom novelesco, isso porque a história se estende um pouco mais do que devia, totalizando duas horas e meia de duração e até o final nos surpreendendo com plot-twists.

À parte desses excessos, é notável como Park conduz a trama, tendo um domínio completo sobre como contar uma história intricada, vez ou outra voltando, pedagogicamente, a um momento já narrado para apresenta-lo sobre outro ângulo, acompanhando um personagem diferente. A sensação é a de observar uma casa de bonecas, daquelas sem fachada onde pode-se ver a vida acontecendo em cada cômodo, com seus segredos revelados, suas verdades e indiscrições.

Indiscreta também é sua câmera, que desnuda a intimidade e os fetiches de seus protagonistas e também da cultura vigente, simbolizado no tio neurasténico de Hideko (em atuação inesquecível de Jin-woong Jo), viciado numa espécie de nanquim com que pinta a boca de preto, ganhando ares demoníacos, o velho também obriga a sobrinha a ler (e por vezes representar) contos eróticos aos aristocratas da região.

Embora não consiga reproduzir a delicadeza e sagacidade do título original dado por Waters, que já induzia ao romance lésbico ao referir-se, com a “ponta dos dedos”, tanto a uma passagem da história que envolve um par de luvas, quanto à metáfora sobre masturbação feminina, Park, contudo, não fica atrás na sutileza de apresentar símbolos desse amor proibido entre duas mulheres. Quase consegue escapar de qualquer fetichismo chulo ao construir cenas de bastante erotismo e sensibilidade, como a que a criada auxilia no banho da superior ou quando ambas provam roupas diante de um espelho, tocando-se mutuamente sob o som de respiros ofegantes. De fato, algumas passagens são bastante excitantes, mas às vezes perdem a força justamente quando vão para a cama; ou seja, quando o diretor estende-se em demasia em mostra-las nuas em mil posições sexuais, sob gemidos e grunhidos semelhantes ao de qualquer vídeo pornô.

Ainda que essa seja a dimensão que mais chame a atenção no filme, a trama de “A Criada” não se resume a ser uma espécie de Romeu e Julieta entre mulheres – ou o “Azul é a Cor Mais Quente” coreano. Amparado por excelentes escolhas artísticas, dignas de prêmios, e atuações impecáveis (sobretudo das duas protagonistas), a história tem também uma forte característica política ao tratar, através da opressão sexual daquela cultura, a dimensão cativa do povo sul coreano sob o domínio japonês. Simbolicamente isso se apresenta nas inserções artísticas, pela literatura e pintura, ao longo da narrativa, tendo talvez como símbolo máximo o quadro Octopus, que aparece na primeira parte da narrativa, em que um polvo gigante devora uma mulher da cintura para baixo. Assim, o vilanismo incorporado no tio de Hideko carrega uma pressão que também é cultural, e a fuga de Hideko é tanto parte de uma trama clássica do tipo “coming of age” (ou seja, de amadurecimento da protagonista), quanto libertária e de dimensão política.

De fato uma história grandiosa, “A Criada” é um filme que exige fôlego e investimento dos espectadores, mas sabe como recompensá-los com suas belas passagens, deliciosos alívios cômicos e uma história poderosa e envolvente. Tendo a sagacidade de adaptar um romance ocidental ao universo coreano, Park segue conquistando um amplo filão do mercado ao misturar os particularismos de sua cultura com uma história potencialmente cativante para todos os públicos.

Vinícius Volcof
@volcof

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