Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 10 de janeiro de 2017

É Apenas o Fim do Mundo (2016): alegoria da despedida

Uma história minimalista, realizada com maestria por um jovem diretor francês com forte sensibilidade estética, mergulha o espectador num turbilhão emocional diante da morte.

Aos vinte e seis anos de idade, o franco-canadense Xavier Dolan acumula prêmios com os seis filmes dirigidos até agora, e também críticas e polêmicas. Tendo estreado na direção com apenas dezenove anos, com “Eu Matei Minha Mãe” (2009), o artista já arrebatou Cannes naquele ano, levando para casa três importantes prêmios. Seus filmes seguintes sofreram inevitáveis comparações com a estreia, marcando os excessos e a imaturidades do diretor, como o histrionismo nos diálogos e o peso estilístico das cenas lentas sob o alto som de alguma música pop (usado a exaustão em “Amores Imaginários”, 2010, por exemplo).

Para quem não o conhece, suas histórias versam sobre relações familiares conflituosas, onde a figura paterna é ausente e a materna é fonte de traumas e fortes embates. Sua fonte primordial, nota-se, parece ser a psicologia, do mito de Édipo às representações totêmicas da psicanálise. Há também uma forte expressão da sexualidade, com as relações homoafetivas sendo exploradas em destaque e representações da fluidez de gênero e outros meandros da identidade. Assim, à parte de qualquer desgosto acerca do resultado final, seus filmes cumprem um importante papel dentro de um debate bastante vivo nos tempos atuais e ainda capengamente explorado no cinema (exemplo igualmente bom são os filmes da diretora Céline Sciamma, como “Tomboy”). Em suma, o cinema de Dolan é bastante atual, jovem, composto de uma linguagem dinâmica e focado nas crises existenciais da juventude média que habita as grandes cidades. Ainda assim, não deixa de ser um cinema em aprimoramento.

Com “É Apenas o Fim do Mundo”, porém, o diretor rompe um pouco com a linha autobiográfica (e talvez ególatra) que seguia até então, produzindo um roteiro que não é de sua autoria, e por isso mesmo muito menos ambicioso ou exagerado. A história é mínima: acompanha Louis (um comovente Gaspard Ulliel, “Hannibal – A Origem do Mal“), um jovem e renomado dramaturgo, em visita à sua família após anos de ausência. Seu objetivo é revelar sua iminente morte, de causas que não nos são reveladas; porém, uma vez de volta ao seu local de origem, onde encontra a mãe (Nathalie Baye, “Prenda-me Se For Capaz”), a irmã mais nova (Léa Seydoux, “Meia-Noite em Paris”), o irmão mais velho (Vincent Cassel, “Cisne Negro”) e sua esposa (Marion Cottilard, “A Origem”), uma torrente de memórias lhe carregam emocionalmente, guiando-o a fortes embates finais com cada uma dessas personagens que metaforizam sua identidade.

Curiosamente a obra não encontrou a mesma ressonância que seus filmes anteriores. Aparentemente, o público estava se acostumando com o histrionismo do diretor e não gostou do passo mais contido e minimalista dado aqui. Ainda que tenha levado dois prêmios em Cannes, fora da croisette francesa, onde Dolan é queridinho, pouco se falou sobre esse filme que é um salto de maturidade de seu realizador em todos os sentidos.

Começando pela escolha de trabalhar com um roteiro alheio. Vale lembrar que a tarefa de delegar não parece ser das mais fáceis para Dolan: comumente ele assina múltiplas funções em seus filmes, entre elas a de roteiro e atuação. Esse texto, porém, origina-se de peça escrita por Jean-Luc Lagarce, falecido nos anos 90 vítima da AIDS.

No espaço que lhe cabe inteiramente – isto é, a direção –, o diretor brilha com um hipnótico domínio das potencialidades da função, que valem até mesmo estudos detidos sobre a riqueza de suas escolhas aqui. Mesmo tendo tido até agora a impressão de que seu nome sempre fora supervalorizado, especialmente pelos juris e críticos europeus, é difícil não apreciar seu olhar cinematográfico e seu bom gosto e habilidade para conduzir takes e montar sequências em suas histórias. Não à toa, saiu de suas mãos passagens memoráveis do cinema francês, papel de parede e pôster de decoração de muito fã de cinema por aí. Em “É Apenas o Fim do Mundo”, restrito quase inteiramente ao ambiente de uma casa, Dolan e sua equipe conseguem construir cenários lúdicos que multiplicam as dimensões emocionais da trama, fazendo o protagonista transitar por um jornada tão extensa quanto a dos grandes mitos de Homero ou da comédia de Dante.

O rapaz mostra-se até generoso e humilde ao reduzir notavelmente suas viciadas inserções musicais nas cenas em slow motion (embora elas existam), substituindo por momentos introspectivos entregues inteiramente aos atores, onde o close-up dá espaço e vida a interpretações profundas e tocantes. Embora parte da audiência possa se incomodar com o excesso dramático das relações interpessoais, vale lembrar que o núcleo desse roteiro é o de ser uma história última, que tiquetaqueia rumo ao final irremediável da morte ao longo de apenas 95 minutos de história. Há, portanto, um sentimento de emergência que preenche cada passo do protagonista, desde o momento em que o jovem Louis chega à casa da mãe e vemos a ansiedade de sua família preparando-se para recebe-lo na porta (cena hilária e angustiante).

Talvez a história seja mais identificável àqueles que, por alguma razão (não necessariamente traumática), tiveram que abandonar seu lar de origem. A volta é um passo doloroso, emocionalmente pesado, onde o impacto do tempo se releva nas pessoas e no ambiente que ficaram e a memória se confunde com a visão de um presente com o qual não nos sentimos mais conectados. Louis, em belíssima cena, visita seu quarto de infância e repousa a cabeça num colchão encostado na parede, enquanto lembra das visitas escondidas que recebia dos namoradinhos de juventude, quando passava a madrugada em experimentações de sexo e drogas. Acorda, de súbito, sob o olhar de sua cunhada (Cottilard), uma ilustre desconhecida que rompe sua identificação com aquele espaço, reforçando sua posição atual de visitante.

Destacando o elenco estrelando do filme, há certa surpresa em ver nomes tão consagrados do cinema em personagens tão “pequenos”, como, por exemplo, a oscarizada Marion Cottilard no papel de uma dona de casa absolutamente banal. Na história de Lagarce, porém, é importante notar que a dimensão expande-se internamente, e não externamente em personagens que realizem grandes feitos ou passem por jornadas edificantes. Tudo pode permanecer aparentemente igual, embora tenha mudado, e os bons atores e atrizes do elenco deixam isso claro nas cenas de destaque com que cada um é presenteado.

Assim, Dolan nos conduz a um emocionante final. Adornado por uma talvez exagerada iluminação crepuscular e simbolizada por um pássaro transcendental, onde Louis tem que, de fato, dizer adeus a sua família. Existe um jeito e um tempo precisos para despedir-se de cada personagem. Às vezes, o rapaz faz errado, inexperiente no ato de se despedir, como quando convida a irmã mais nova a acompanha-lo numa jornada que é só dele. Outras vezes, testemunha o luto alheio, como quando seu irmão percebe a mensagem que Louis deseja passar por meio de uma simples frase: “preciso ir agora” – e se enfurece. Assim, segue por uma sequência de interações profundas e lacrimejantes, até encontrar a figura última: diante da mãe – a mãe mais velha já representada no cinema de Dolan, seria um símbolo do amadurecimento do rapaz? –, resta o beijo final e um adeus que transforma-se em até logo: “dá próxima vez estaremos melhor preparados” – lhe promete a mulher.

Repleto de poesia, metáforas, símbolos e construções que só os espíritos mais atentos poderão capturar ao longo da sessão, Dolan certamente dá um passo além de tudo o que havia realizado até aqui. Nada garante que essa maturidade se manterá em seu próximo filme, sua primeira produção americana, contando com um elenco que incluirá Natalie Portman (“Cisne Negro“), Kit Harington (o Jon Snow daquela série que eu não preciso dizer o nome) e nada mais nada menos que a participação de Adele, com quem o diretor já trabalhara na direção do clipe “Hello”. “The Death and Life of John F. Donovan”, seu próximo filme, tem data prevista para 2018 e pode tanto recair nos velhos vícios ambiciosos de seu realizador, como manter a sensibilidade demonstrada nesse inspirado último filme. Até lá, temos uma obra verdadeiramente arrasadora, que demanda várias visitas e muitas reflexões por aqueles que estiverem dispostos.

[Dedicado a Patrick Fernandes, que me convenceu a insistir em Dolan.]

Vinícius Volcof
@volcof

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