Diferentemente da maioria, o filme não traz dogmas ou respostas prontas, fazendo o espectador refletir e questionar sobre o modo de vida tradicional e sobre a criação de filhos.
Se existem filmes com vocação para serem rotulados de “cult”, “Capitão Fantástico” é um grande exemplo. Lamentavelmente, esse termo recebe uma carga axiológica negativa, quando o fato de ser cult não o torna monótono ou tedioso, apenas afastando-o do cinema mainstream que prevalece. Uma pena: todos deveriam assistir a esse filme.
No enredo, Ben (Viggo Mortensen) cria seus seis filhos longe da civilização, no meio de uma floresta. Apesar de não terem ensino formal por não freqüentarem a escola, o pai é exigente com tudo que ensina, que varia entre habilidades para sobrevivência (luta, caça, escalada etc.) e aprendizado intelectual (por leituras complexas de, por exemplo, literatura, filosofia e física). Tudo muda quando eles saem da floresta e reencontram os familiares em razão de um evento trágico.
Se fosse possível resumir o filme em uma curta expressão, seria “choque cultural”. De maneira inteligente, o longa não começa com o abismo intradiegético: consciente da sua diegese heterodoxa, primeiro integra o espectador naquela realidade, para depois contrapô-la internamente, com outras personagens. Em outras palavras, antes de escancarar um abismo – de um lado, a vida de Ben e seus filhos na floresta; de outro, a vida dos demais familiares em meio à civilização –, o diretor e roteirista Matt Ross prepara o público em relação às idiossincrasias das personagens principais.
Não por outra razão, o prólogo consiste numa encantadora contemplação da natureza (bem ao estilo “Na Natureza Selvagem”, referência clara), seguida de uma explicação visual dos hábitos da família (mais uma vez, com inteligência, evitando o didatismo exacerbado da narração). Qual a razão de ir ao mercado quando se pode caçar e plantar os alimentos? Ben é um crítico voraz a tudo que esteja relacionado à civilização (escolas, hospitais, cristianismo, alimentos industrializados, refrigerantes etc.), o que impacta na criação dos filhos, que não jogam videogame (este lhes causa asco, em sua maioria), mas aprendem sobre Noam Chomsky. Não são crianças quaisquer que conseguiriam rotular os avós como “capitalistas fascistas” entendendo o significado da expressão.
Verifica-se um embate cultural tanto em relação às crianças quanto aos adultos. O que é melhor para criar os filhos: falar sempre a verdade (sobre tudo) ou evitar tanta transparência? A melhor parte é que o filme faz o público pensar, sem o intento de doutrinar – até porque não existe uma forma correta de viver a vida e de criar os filhos. Viggo Mortensen dá vigor ao papel que interpreta, contribuindo para a função questionadora de Ben. Se o plot seguisse o ritmo clássico, o avô (Frank Langella em mais um coadjuvante de luxo) seria o vilão, mas o texto prefere transcender os arquétipos, sendo, sem dúvida, um roteiro repleto de camadas.
O repetido mantra da preferência da prática em detrimento do mero discurso também é comprovação da riqueza do script, que, contudo, peca bastante no desfecho, que é uma solução deveras fácil para a complexa situação em que as personagens se encontram. Mesmo na direção existem virtudes – como as contagiantes cenas musicais, com auge em “Sweet Child O’Mine” – ao mesmo tempo em que se verificam alguns equívocos – como a prevalência de tomadas curtas, reduzindo o realismo. Chega a ser desconfortável a quase exclusividade de planos fechados e closes, opção para aproximar as personagens do espectador, mas que prejudica bastante a visualização do contexto e da própria mise en scène.
Como comédia dramática, “Capitão Fantástico” vai satisfazer grande parcela do público, ao menos em razão da sua originalidade (algumas cenas são inesquecíveis, de tão inusitadas). Como contribuição para a sétima arte, deverá ser muito lembrado por sua vocação como filme cult – nesse caso, na melhor acepção do termo.