Surpreendente pela delicadeza, um filme dirigido por um conhecido ator secundário de Hollywood pode ser o azarão nessa temporada de premiações.
Filmes idílicos e escapistas geralmente nos atraem por apresentar, na segurança de uma sessão de cinema de duas horas de duração, outras formas de vida e concepções de mundo. Eles focam nos detalhes da experiência humana para mostrar o difícil desafio de se tentar escapar das regras da civilização em busca de uma experiência mais harmônica com Deus, o cosmos, a natureza, com si mesmo ou com o que quer que seja. Assim, nos apaixonamos pela história de Chris McCandless em “Na Natureza Selvagem” (2007), ou, na literatura, pelo clássico Folhas da Relva (1855), do ermitão Walt Whitman, e Walden – a vida nos bosques (1854), de Henry D. Thoreau, que dizia buscar “sugar o tutano da vida”.
Em tempos de redes sociais e smartphones, de uma humanidade cada vez mais integrada e cibernética, “Capitão Fantástico” retoma a mesma temática das obras acima mencionadas por meio do retrato sensível de um pai de família cuidando de seus seis filhos no seio da floresta. Com uma interpretação soberba de Viggo Mortensen como o patriarca, em perfeita sintonia com todos os intérpretes mirins e somado ao roteiro e direção de Matt Ross, o filme nos dá um exemplo acachapante de que, mesmo em pleno 2016, outras formas de vida são possíveis.
Ross não é o mais experiente dos diretores, mas sua carreira em Hollywood já se estende por quase três décadas, sobretudo em papéis coadjuvantes em bons filmes, como “A Outra Face” (1997) e “Psicopata Americano” (2000). Recentemente também esteve na série “American Horror Story”. Atrás das câmeras dirigiu quatro trabalhos, todos escritos por ele e a maioria no formato de curtas-metragens, mas certamente esse novo filme pode dar início a uma nova fase de sua carreira, prometendo outros belos trabalhos pela frente.
O roteiro também sai de suas mãos e encanta pela delicadeza com que aborda a dinâmica familiar desses exóticos personagens. Fugindo (na medida do possível) de excessos dramáticos e caminhos narrativos já previsíveis ao espectador mais atento, mais do que nos surpreender, o que esse belo texto faz é nos encantar. Os atores mirins parecem apenas a escolha perfeita para cada personagem que interpretam, formando um conjunto pelo qual é fácil ter empatia e sensibilizar-se diante das dificuldades que a trama os impõe. Mortensen assume a figura de “paizão” (como já havia apresentado no bom “A Estrada”, de 2009) sem perder seus traços mais estranhos, como a fala mansa e os olhos agitados. Com isso, Ben parece tornar-se o personagem pelo qual o ator esperou por toda a vida.
Depois de um primeiro ato centrado na exótica dinâmica de vida dessa família, “Capitão Fantástico” torna-se um road-movie sobre o luto, sem perder a leveza conquistada na primeira parte, passada inteiramente nas florestas do noroeste americano. Ainda que acontecimentos da história sejam quase mínimos em sua dimensão despretensiosa, através dela fala-se de amor, relações familiares e profundos questionamentos existenciais. Há também fortes e incessantes críticas aos EUA, pelo automatismo de sua vida de excessivo consumismo: “Você sempre disse que aos americanos falta educação e sobram remédios, papai” – interpela Ben, a certa altura, uma de suas filhas.
O consumismo alienante já foi criticado outras vezes no cinema e de formas diversas, basta lembrar dos zumbis no shopping do clássico “Despertar dos Mortos” (1978), de George Romero Em “Capitão Fantástico”, contudo, não apenas a obsessão pela propriedade, o apego ao ego ou a doença capitalista são postas em crítica nas falas dos personagens (saídas diretamente das grandes obras sobre marxistas e seus derivados), mas, sobretudo, questiona-se o esvaziamento da experiência humana, da visceralidade do encontro de subjetividades, do amor e da intimidade, enfim, da verdade da existência. O tutano da vida em seu osso duro e brutal, bem como em seu caldo revigorante.
Ainda que ateus e bastante irônicos quanto ao cristianismo e às religiões em geral, Ben e sua família prestam um culto próprio e especial à vida ao seu redor e à existência que compartilham. Embora eles pareçam hippies em sua cabana na forma de pirâmide, tal reverência não se dá por um caminho “age of Aquarius” de culto à natureza com cirandas e abraços em árvores (e isso fica bastante claro quanto passam uma noite num estacionamento de trailers e entram em confronto com alguns dos outros residentes), mas de um jeito humano e possível: vivendo em conjunto e reconhecendo a importância disso. As bases dessa utopia são o amor e a verdade, que imperam entre eles. Ah, e também Noam Chomsky: o linguista e pensador americano anticapitalista é figura recorrente da narrativa, tanto por meio de citações quanto num momento delicioso em que a família celebra do Dia de Noam Chomsky, em substituição ao Natal.
Com uma trilha sonora surpreendente, que começa com clássicos de Bach no meio da floresta e encerra-se com uma versão única de Sweet Child O’ Mine, do Guns N’ Roses, essa produção indicada ao Globo de Ouro e ao SAG Awards pode ser o filme que pegará todos de surpresa nessa temporada de fim de ano. Perfeito para as férias e para se ver em família, não por ser tão completamente leve a ponto de esvaziar-se de qualquer significado, mas, justamente o oposto, por saber tocar nos pontos mais delicados da experiência humana sem perder a beleza e leveza do espírito.