Polêmicas de lado, o filme é uma poderosa realização de seu diretor, que mergulha na própria história familiar para trazer um drama comovente, que vale a pena ser assistido.
O filme de David Schurmann estreou no circuito comercial envolto em polêmicas, depois de ter sido selecionado pelo Ministério da Cultura como o representante do Brasil a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A confusão relaciona-se ao momento político do país, de impeachment e polarização política, e de seu concorrente direto, “Aquarius“, de Kleber Mendonça Filho, ter marcado sua campanha de divulgação por denunciar em alto e bom som o que seus realizadores consideravam um golpe que estava em curso no país. Em seu momento mais icônico, na croisette do Festival de Cannes deste ano, os atores e diretor entraram na sessão portando placas pedindo “o fim do golpe no Brasil” em vários idiomas.
Por conta disso, a seleção do Ministério da Cultura (problemático por estar restrito à decisão de poucos) foi visto como um boicote ao filme de Kléber, e o filme de David acusado de ser “chapa-branca”. Como era de se esperar, atores e equipe de “Pequeno Segredo” logo saíram em defesa do filme. Sua protagonista, Julia Lemmertz, tem reclamado ativamente do barateamento das críticas que a obra tem recebido, acusada de “golpista” nas redes sociais e até por jornalistas. Já o diretor, tenta evitar polêmicas, mais preocupado com sua divulgação internacional e em cativar os corações do votantes da Academia. Em entrevistas, David chega a celebrar a possibilidade de o país ter este ano três representantes no Oscar, referindo-se à boa repercussão do documentário “Menino 23″, de Belisario Franca, e ao lobby para Sonia Braga ser incluída entre as melhores atrizes. Ainda assim, é difícil evitar ressentimentos quando seu filme passa por episódios como o que “Pequeno Segredo” tem passado: assim que saiu o resultado do Ministério da Cultura, uma montagem de seu cartaz alterava o título para “Pequeno Golpe”, provocando a ira de seus realizadores.
Justamente pela efervescência desses nossos tempos, acredito válido um posicionamento do crítico que vós escreve (que não é uma máquina, mas uma pessoa) e por isso digo que apoio incondicionalmente “Pequeno Segredo” em sua disputa pelo Oscar, torcendo com em todos os anos pelos filmes nacionais e latinoamericanos na maior premiação do cinema mundial. E isso porque os predicados da obra intimista de Schurmann, um diretor que até agora havia passado despercebido, são suficientes para leva-lo aonde quer que ele chegue. Misturar “alhos com bugalhos”, ou “Pequeno Segredo” com o impeachment, Temer e o que quer que seja é apenas mais uma besteira das bestas-feras da internet – muitas das quais não viram e nem irão ver o filme.
Agora sim, direto ao ponto: a história intercala três núcleos narrativos: o primeiro, acompanha o casal de velejadores Heloísa (Julia Lemmertz) e Vilfredo Schurmann (Marcello Antony) em suas famosas jornadas marítimas, que renderam livros (como 10 Anos no Mar), quadros na televisão (como O Mundo em Duas Voltas, no Fantástico) e fama internacional; o segundo, acompanha o início tumultuado do relacionamento entre Jeanne (Maria Flor) e Robert (Erroll Shand), no coração da Amazônia; já o terceiro mostra a aridez do casal de idosos Barbara (Fionnula Flanagan) e Will (Michael Wade), pais de Robert que vivem na Nova Zelândia.
Sem estragar as surpresas do roteiro artesanalmente criado por Marcos Bernstein (de “Central do Brasil”) e uma trupe de co-roteiristas, vale apenas assinalar que as personagens se cruzam em circunstâncias dramáticas, como prevemos desde a primeira cena, num belíssimo plano sequência que parte do mar aberto até as areias de uma praia, onde a família Schurmann realiza um ritual.
Inspirado no livro homônimo escrito por Helóisa Schurmann, David encolheu mergulhar de cabeça nessa história intimista sobre seus pais e sua irmã, Kat (a estreante e reluzente Mariana Goullart), de um jeito menos óbvio, misturando partes da narrativa escrita por sua mãe com lembranças que ele próprio guardava sobre os acontecimentos daqueles anos. Assim, cria uma história dinâmica, que intercala locais e temporalidades, ao mesmo tempo preservando a sensibilidade necessária a uma fábula como essa.
Ainda que exagere nos momentos “feitos para chorar” (mesmo que o diretor diga, em entrevistas, que tentou evitar o sentimentalismo), não há mal nenhum em optar por abraçar a emoção. Se tantos filmes hollywoodianos escolhem percorrer esse caminho – e Spielberg está aí para comprovar isso –, porque nossos brazucas não podem fazer o mesmo? Ainda mais quando a história original é de fato emocionante, acachapante, um verdadeiro tapa na cara.
Do pôster ao trailer, quem pesquisa sobre “Pequeno Segredo” antes de assisti-lo já vai à sessão prevenido do soco no estômago. Quem leu o livro de Heloísa sabe precisamente o que lhe aguarda. Mas a representação visual criada por Schurmann e lindamente ordenada pela diretora de arte alemã Brigitte Broch, vencedora do Oscar por “Moulin Rouge” (2001), dá alma nova e criativa à história original em que se baseia, sem abandonar o compromisso com a fidelidade, mas construindo aspectos ficcionais muito importantes para qualquer narrativa dessa escala.
Confesso que minha alta expectativa pelo filme era proporcional ao temor que tinha do casal protagonista. Isto porque Lemmertz e Antony não são exatamente atores consagrados pelo cinema, embora já tenham tido outras incursões. O receio, porém, cai por terra antes do já mencionado plano-sequência inicial chegar às areias da praia. Antony tem um papel contido e pontual, no estilo do Vilfredo original, um homem forte, mas com um quê de tímido. Já Lemmertz certamente faz uma das maiores interpretações de sua carreira (se não a maior). Sua Heloísa é uma mistura comovente de exploradora com mãe zelosa, temerosa por sua pequena Kat.
À essa dinâmica soma-se a sempre eficiente Maria Flor, em papel crucial, e o surpreendente Erroll Shand, original da Nova Zelândia, tal qual seu personagem Robert, apresentando nuances dramáticas bastante convincentes. O tom vilanesco fica a cargo da irlandesa Fionnula (de “Os Outros”), que não deixa de ter um quê novelesco, casando bem com o casal de protagonistas brasileiros. Por fim, destaque necessário à encantadora Mariana Goullart como Kat, selecionada a partir de um workshop da produção do filme, que daqui em diante só tem a deslanchar.
É possível que a audiência – e especialmente os críticos – saiam de “Pequeno Segredo” com uma lista de críticas aos aspectos estruturais da obra, excesso de dramatização ou tom lúdico que o filme toma ao final. É claro que a obra não é perfeita, tendo exageros e gorduras. Eu diria que o maior deles talvez seja no terceiro ato, em que as tramas se entrelaçam e o desenvolvimento principal ocorre com uma rapidez acachapante. Ainda assim, considerando o envolvimento emocional de seu diretor e sua peleja por realizar uma obra tão pessoal, é notável o resultado final que ele apresenta.
Qualquer comparação com “Aquarius” ou debate de mérito acerca da escolha à disputa pelo Oscar é contraproducente e mesquinha. Cabe-nos, como fãs do cinema acima de tudo, comemorar a realização de obras tão boas no nosso cinema atual – lembrando um movimento curioso de países em tempos de crise de produzir excelentes obras audiovisuais.
É certo que o diretor David Schurmann fez questão de se cercar dos melhores profissionais para contar essa história que talvez seja a mais íntima de sua carreira. Agora, sua empreitada é pelo lobby ao Oscar, e para isso o Ministério da Cultura e os produtores investiram US$ 250 mil na campanha de divulgação nos EUA. Isso envolve desde material de marketing, até compra de entrevistas em talk-shows (sim, isso acontece). O valor é modesto se comparado ao que outras produtoras investem por uma vaga entre as poltronas do Teatro Kodak, ainda assim o impacto emocional pesa na mão dos juízes na hora de fazer suas listas e nosso filme tem esse ponto a seu favor.
Independente disso, “Pequeno Segredo” surge como uma joia de nosso cinema, quebrando com a dinâmica temática e de gêneros de nossa produção audiovisual, diversificando nosso plantel de filmes e nos oferecendo uma obra profunda e atemporal de amor e vida.