Mesmo com o formato pouco convencional e não-linear escolhido pela montagem, o filme nos conta a história do período mais efervescente de nossa produção audiovisual.
O realizador desse documentário nacional premiado no Festival de Cannes, Eryk Rocha, propõe em sua sinopse uma “experiência interpretativa e reflexiva” sobre um dos períodos mais expressivos de nossa produção audiovisual. Misturando uma montagem fabulosa com a voz de seus entrevistados, a obra constrói uma narrativa inteligível sobre o que foi o movimento, a conjuntura de seu aparecimento e sua penetração internacional. Assim, acaba destacando mais seus autores do que suas obras, valorizando mais seus protagonistas do que as belas cenas eternizadas na tela grande. Mais importante, destaca como o movimento, por mais revolucionário e vanguardista que tenha sido, foi conduzido por um grupo de jovens abastados, bem formados, imbuídos pelo cinema francês e formado exclusivamente por homens.
Com “Rio, 40 Graus” (1955), Nelson Pereira dos Santos deu partida nessa nova onda que congregou algumas das mentes mais inventivas e improváveis de nossa classe artística. O grupo unia tipos como o ex-diplomata Vinícius de Moraes, o físico Joaquim Pedro de Andrade e alguns advogados do Largo São Francisco, da faculdade de direito da USP, como o próprio Nelson Pereira. De alguma forma, eles foram capazes de fazer com que uma profusão de produções começassem a nascer pelos quatro cantos do país, financiadas pelo CPC (o Centro Popular de Cultura da UNE) ou pelos produtores que nessa época começavam a se profissionalizar, como Zelito Vianna e o até hoje influente Luiz Carlos Barreto.
O manifesto não-escrito do movimento buscava retratar o país como ele era, contar histórias que se dessem no “chão de fábrica” do país, por suas ruas e esquinas, da aridez do sertão às areias de Copacabana. As inspirações mais evidentes foram o neo-realismo italiano (de filmes como “Ladrões de Bicicleta”, de 1948) e da Nouvelle Vague francesa, com as novas linguagens trazidas por Godard, Truffaut e Alain Resnais. A ideologia era embebida pelo marxismo, renovado e também em crise desde maio de 1968. Justamente por isso, essa corrente teve alta penetração na Europa, sobretudo na França onde, em 1962, o Brasil ganhou sua única Palma de Ouro com “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte.
Em uma hora e meia de projeção, os nomes que circulam pela tela explicam como seus caminhos se cruzaram com o movimento. Leon Hirszman, certamente um dos mais talentosos dessa época, conta como entrou sem querer no ramo, mais interessado em arrumar um jeito de fazer a vida do que pela paixão à sétima arte. Seu discurso franco é intercalado por belas cenas de “A Falecida” (1965), um de seus primeiros filmes, adaptado da obra de Nelson Rodrigues e estrelado por uma jovem Fernanda Montenegro, vista em cena tomando um alegre banho de chuva.
É curioso imaginar como um grupo tão heterogêneo de realizadores tenha se reunido tão intimamente nessa época, porém, uma rápida olhada na conjuntura daqueles anos nos explica os porquês. Os tempos de chumbo de repressão e perseguição política criaram a própria nêmesis do regime por meio do espírito belicoso e indignado, sobretudo dos jovens, manifesto nas músicas de protesto (revista em documentários nacionais igualmente bons, como “Uma Noite em 64″), agremiações estudantis ou político-partidárias e também no cinema, em filmes tão incisivos e perigosos quanto “uma faca só lâmina”.
Ouvir o relato desses nomes, por mais pretensioso ou provinciano que seja (como em suas entrevistas em francês sobre a conjuntura nacional) não deixa de ter sua relevância histórica. De forma alguma deixa de ser notável o que esses homens conseguiram realizar, fazendo do Brasil um dos lugares mais dinâmicos da produção cinematográfica mundial naquele período, atraindo nomes de todos os cantos, como o português Ruy Guerra e o francês Jean-Claude Bernadette.
Também vale lembrar que tal corrente desmembrou-se em outros movimentos que se seguiram pela história, como o cinema marginal de Rogério Sganzerla (“O Bandido da Luz Vermelha”, 1968) e a crítica urbana de Luiz Carlos Person,“São Paulo, S/A” (1965), estrelado por um soberbo Walmor Chagas. De fato, até hoje o tsunami do Cinema Novo ainda inunda nossa manufatura cinematográfica, mesmo que a pasteurização americana tenha dominado certos gêneros no país, sobretudo a comédia. É até curioso lembrar que um dia fomos capazes de produzir filmes tão potentes e até assustadoramente hilários como “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e “Hitler 3º Mundo” (1968), de José Agrippino de Paula.
Assim, a beleza do filme-poesia de Eryk Rocha é nos permitir lançar um novo olhar esse movimento tão respeitado, quase sacralizado e, por isso mesmo, intocável de nosso cinema. Nesse documentário vemos erros e acertos, revelam-se os egos e também os gênios, enfim, todas idiossincrasias que fazem de nossa produção ainda insuficiente e limitada, ainda que tenhamos tantas histórias pulsantes para contar.