A despeito de ser o décimo quarto filme da Marvel Studios, o longa de Scott Derrickson se diferencia não apenas por seu elenco incrível ou por introduzir o misticismo no Universo Cinematográfico do estúdio, mas por ter um herói que usa outras ferramentas além da ação pura e simples.
É mais do que adequado que este “Doutor Estranho” tenha estreado em diversos mercados do mundo justamente no dia do aniversário de um de seus criadores, Steve Ditko. Criado em colaboração com Stan Lee nos anos 1960, o personagem trouxe o misticismo em alta escala para a Marvel Comics, e Ditko bebeu muito de pintores surrealistas como Salvador Dali ao retratar as aventuras do herói.
Em compensação, o bom Doutor também foi citado em diversas obras de contracultura psicodélica, especialmente pela banda Pink Floyd, sendo referenciado de maneira direta na música “Cymbaline” e um dos painéis de uma de suas HQs também compõe parte da capa de um dos álbuns do conjunto britânico, “A Saucerful Of Secrets”.
Portanto, não é à toa que este décimo quarto longa do Universo Cinematográfico Marvel seja o mais lisérgico da franquia, com o diretor e co-roteirista Scott Derrickson (“O Exorcismo de Emily Rose”) bebendo diretamente dessa fonte mais alternativa ao criar o visual único do filme. Entretanto, mesmo tendo esse pé no alternativo, a produção ainda tem raízes profundas na chamada fórmula Marvel, em uma fusão que surpreendentemente funciona, salvo eventuais trancos.
Na trama, o arrogante e talentoso neurocirurgião Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) sofre um acidente que o priva do uso total de suas mãos. Desesperado por uma cura e afastando até mesmo sua amiga mais próxima, Christine (Rachel McAdams), sua busca o leva ao Nepal e a um templo secreto onde é iniciado nas artes mística pela Anciã (Tilda Swinton). Mas quando o fanático Kaecilius (Mads Mikkelson) ameaça lançar o mundo em um perigo inimaginável, Strange se vê obrigado a entrar em uma guerra para salvar o planeta, ao lado de outros mestres das artes místicas como Mordo (Chiwetel Eijofor) e Wong (Benedict Wong).
Mesmo com Derrickson e sua equipe de arte tendo aproveitado muito do visual das HQs sessentistas, o roteiro escrito pelo cineasta em colaboração com Jon Spaihts (“Prometheus”) e C. Robert Cargill (“A Entidade”) se utiliza de abordagens mais recentes do personagem, especialmente de histórias escritas por Brian K. Vaughan (“Lost”) e J. Michael Straczynski (“A Troca”), algo apropriado pois suas fases exploram o mundo de Estranho e sua origem com uma sensibilidade mais cinematográfica e atual – tanto que os fãs de quadrinhos verão cenas inteiras dessas histórias transplantadas para tela.
Não é exagero colocar que a produção tem o elenco mais forte já reunido pela Marvel Studios, algo até necessário para trazer credibilidade a uma narrativa tão “fora da caixa”, especialmente considerando que o público mais cético de hoje em dia. Mesmo papéis “menores” ganham intérpretes de peso, como Michael Stuhlbarg e Benjamin Brett.
Benedict Cumberbatch capitaneia a trupe trazendo muito do charme metido que o tornou mundialmente conhecido em “Sherlock” para o papel, o que faz com que o público goste de Stephen Strange mesmo quando este age como um babaca prepotente.
O crescimento pessoal do herói-titulo, embora previsível, jamais soa forçado justamente por conta da delicadeza com que Cumberbatch trabalha. Pequenos gestos, como a hesitação ao abraçar a família de um paciente ou o colocar de um relógio, possuem a mesma importância para a trama quanto as coreografias por ele executadas em suas magias. Estranho é um herói contemporâneo que diferencia dos demais justamente por não poder ou mesmo querer usar seus punhos para resolver todos os seus problemas e Cumberbatch traz esse diferencial ao explorar a inteligência de seu personagem acima de qualquer fisicalidade.
A escalação da etérea Tilda Swinton no papel da Anciã causou certa polêmica junto aos fãs. Deixando de lado essa questão – provavelmente motivada pela bilheteria chinesa -, a atriz encarna o papel de mentora não apenas com convicção, mas com um ar travesso que se encaixa perfeitamente na sua versão Maga Suprema.
Já Chiwetel Eijofor também faz uma versão de Mordo bem diferente do vilão unidimensional dos quadrinhos, aqui um aliado de Strange e seguidor de uma doutrina estrita, com um arco interessante ressaltado pelo talento de seu intérprete. Benedict Wong faz de seu quase xará Wong um personagem cujo humor vem de sua seriedade, em uma interpretação que, por vezes, lembra Buster Keaton.
A Christine Palmer de Rachel McAdams não é a típica namorada do herói, começando pelo fato de que, mesmo tendo uma participação mais discreta, suas ações são sempre ativas. O relacionamento dos dois, cheio de turbulência, ancora Stephen (e eventualmente o espectador) no mundo real em diversos sentidos.
O ponto “mais fraco” (entre aspas mesmo) do elenco é Mads Mikkelson, mas apenas porque o roteiro não lhe faz justiça. Imponente e com uma forte presença física, Mikkelson se mostra melhor que seu Kaecilius. As motivações do antagonista não são bem exploradas, mas o dinamarquês traz dignidade ao papel e até certa emoção – vide um diálogo em que Kaecilius se permite derramar uma lágrima.
Como colocado acima, o design de produção é calcado no surreal e a fotografia do filme vem em cores predominantemente fortes (ao contrário dos últimos longas da Distinta Concorrência, aqui o azul e o vermelho permitem-se ser azul e vermelho). A trilha sonora de Michael Giacchino, embora não seja o melhor trabalho do compositor, sai do padrão moroso da maioria dos filmes da Marvel Studios e o tema do personagem-título em sua versão progressiva realmente funciona.
As cenas de ação carregam na psicodelia, com destaque para o embate no plano astral, a batalha campal em Nova York (que faz de “A Origem” um mero origami em comparação) e a inteligência na resolução do duelo final. O modo imaginativo com o qual as magias são retratadas e o escopo das setpieces pedem por uma tela de formato maior, sendo recomendado ver o filme em salas IMAX, MacroXE ou XD, sempre em 3D, tão bem utilizado pelo filme que torna o formato quase obrigatório.
Mesmo errando pontualmente na falta de tato no uso do humor, com algumas gags mal colocadas ou piadas que se estendem além do timing, “Doutor Estranho” mostra que a Marvel Studios ou sua “fórmula” não perderam o encanto.