O roteiro é fraco e a originalidade é ausente. Contudo, com um CGI psicodélico estonteante e um show do grandioso elenco, todas as falhas (quase) ficam esquecidas.
Apesar do título, “Doutor Estranho” é bastante familiar. A Marvel mais uma vez abraça as convenções dos filmes de heróis – inclusive as que ela mesma criou. É uma apresentação formulaica de uma história de origem, cuja narrativa é previsível e se torna cada vez mais próximo do enfadonho: apresentação do protagonista, desafio inicial, jornada pela solução, inserção no mundo novo, assunção do heroísmo e dos poderes e desafio final (contra o antagonista). Mais clichê, impossível; é a zona de conforto. Todavia, o resultado é inquestionavelmente aprazível.
Na trama, o protagonista é Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), neurocirurgião arrogante e cheio de si que vê sua vida mudar ao sofrer um acidente de carro, que o impossibilita de continuar com sua vida – leia-se, seu trabalho – em razão de uma debilidade nas mãos. Desesperado após não obter resultado com a medicina, parte para Kamar Taj, em Katmandu (Nepal), onde pretende encontrar a recuperação. Porém, acaba descobrindo uma realidade nova que até então desconhecia, aprimorando muito mais que sua condição física.
A grande aposta de “Doutor Estranho” reside nos efeitos visuais, área em que o filme é sublime. O diretor Scott Derrickson – pouco conhecido e oriundo do cinema de terror, trajetória igual à de Sam Raimi – é feliz ao criar uma atmosfera psicodélica e alucinogênica. Inspirado em gênios como Hitchcock (“Um Corpo que Cai”) e Kubrick (“2001: uma Odisseia no Espaço”), Derrickson não chega ao brilhantismo, mas aprendeu bem a conexão necessária entre os efeitos visuais e o enredo. Não basta a psicodelia, ela precisa fazer sentido. Acertadamente, as imagens surreais se encaixam no contexto estabelecido, tornando-se impressionantes sem largar a coerência.
A direção consegue elaborar cenas épicas, como a do acidente – o slow motion que antecede os impactos é cirúrgico – e a do primeiro encontro de Strange com a Anciã (quando o surreal cresce, em detrimento do racional). O CGI é fenomenal e tem uma criatividade visual inegável. A “dobra” dos prédios traz recordações de “A Origem”, é verdade, mas vai muito além. A criatividade, contudo, é ausente no roteiro, o que resulta em um ritmo irregular que meros establishing shots no Nepal, ainda que belos, não salvam. O primeiro ato tem elipses constantes e sequências curtas, ao que se segue uma ação cada vez mais frenética e demasiadamente alongada.
É a obsolescência do roteiro que impede que a película esteja entre as melhores dos filmes de heróis. Embora seja eficaz ao criar uma mitologia própria – inclusive com expressões particulares, como “Manto da Levitação” (praticamente uma personagem à parte), “dimensão espelhada”, “dimensão negra” etc. –, suas idiossincrasias não são suficientes para sustentar uma narrativa tão clichê. Isso fica ainda agravado com alguns elementos ruins, cinco merecem destaque. Não obstante, há que se admitir que o objetivo de constituir uma história de origem é atingido.
Há um didatismo exagerado no plot, subestimando o espectador. Até mesmo a personalidade de Strange é “mastigada” para facilitar a compreensão, quando o perfil é bastante conhecido (parecidíssimo com Tony Stark). Os diálogos são desagradavelmente óbvios, chegando ao nível “ninguém teria feito melhor” versus “eu teria”. Perdendo a oportunidade de ter uma consistência diferenciada e apostar na sobriedade, são várias as piadinhas, nem todas engraçadas (sem piadas o filme não é Marvel). Ainda, o lado antagonista é genérico como um(a) Lanterna, desperdiçando o excepcional Mads Mikkelsen – com mais conteúdo, Kaecilius teria sido um ótimo vilão. Por fim, no que lhe é peculiar, a defesa de multiversos e da vastidão da realidade, o filme é bastante raso (especialmente na abordagem simplista da questão tempo-espaço, que prejudica o desfecho, também simplista) e deixa algumas pontas soltas. Uma delas concerne à Anciã, que só é fascinante graças à espetacular Tilda Swinton.
A mudança de gênero da personagem The Ancient One (o nome em inglês é muito mais adequado) foi uma ótima ideia ao utilizar a atriz britânica. Sua androgenia característica fornece à personagem todas as necessárias camadas de complexidade (as que o roteiro evita). Os ensinamentos de Anciã são fascinantes! A escola britânica de atuação é a melhor do mundo: Swinton só não vence Benedict Cumberbatch porque ele encarna o Doutor Estranho como nenhum outro ator conseguiria. Merece atenção sua linguagem corporal (em especial o tremor das mãos), que transita nas nuances da personagem, entre a egolatria e a humildade (ou algo próximo disso). Cumberbatch dá (mais) um show de atuação. No elenco também estão Chiwetel Ejiofor, Rachel McAdams e Benedict Wong, subaproveitados como Mikkelsen.
Em síntese, “Doutor Estranho” é mais um filme da Marvel, que só não é descartável pelo elenco formidável e pelos efeitos visuais magníficos. Tudo que já foi visto se repete: nada no roteiro é “estranho”, o estúdio não quis inovar. Porém, com magia, CGI estonteante, Benedict Cumberbatch e Tilda Swinton, inovar não foi necessário para encantar.