Mike Flanagan é o grande nome do filme, como diretor e roteirista. O trabalho é de bom nível, não se pode negar. Contudo, se o cineasta tivesse sido mais ousado e saísse das convenções do gênero, teria mudado o paradigma do terror. Não foi dessa vez.
Se “Ouija – Origem do Mal” não é um desastre como tinha tudo para ser, o mérito é de Mike Flanagan. E se “Ouija – Origem do Mal” tem defeitos, a maior parte do demérito é de Mike Flanagan. Coube ao cineasta dedicado ao terror dirigir e roteirizar a prequel do fraquíssimo “Ouija – O Jogo dos Espíritos” (2014). A tarefa era árdua, mas foi executada com êxito: não apenas seu filme é melhor que o de 2014, como constitui um terror respeitável – isto é, não ofende intelectualmente o espectador.
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Na trama, Alice (Elizabeth Reaser) é uma charlatã que vive de enganar as pessoas, fingindo se comunicar com espíritos. Para o trabalho, conta com truques e com a ajuda das filhas, a adolescente Lina (Annalise Basso) e a pequena Doris (Lulu Wilson). A vida das três muda drasticamente quando Doris revela mediunidade, usando um tabuleiro de Ouija para se comunicar com o falecido pai – mas também com outros espíritos.
Considerando a singeleza do enredo, como diretor, o saldo de Flanagan pode ser considerado bastante positivo. Embora não chegue a subverter o gênero – o que seria ideal –, seu trabalho, além de artisticamente honesto, tem requintes pontuais. Há um excelente uso do campo, manipulando as proporções no quadro e trabalhando com profundidade de campo em vários momentos. Não se espera em um terror um recurso rebuscado como tela falsamente dividida: de um lado, um close em uma personagem; de outro, com ou sem foco, outra personagem, mais distante. O trabalho de enquadramento se faz presente em vários momentos – a primeira aparição do Padre Tom (Henry Thomas), por exemplo, não surpreende, mas é inusitada do ponto de vista visual. Alia-se a isso um design de produção certeiro, da logomarca da Universal à contextualização histórica (visual vintage na direção de arte, impecável no figurino).
Mais do que isso, a câmera de Flanagan sabe conduzir o espectador como não é comum no terror. Duas cenas merecem menção: a primeira é o zoom in em uma fotografia de família, que tem como objetivo narrativo explicar o contexto; a segunda é um plano encantador em que Doris conhece o tabuleiro (e a câmera faz uma movimentação magnífica). O básico também está lá: plongée quando as três jogam juntas – uma câmera subjetiva muito sugestiva, considerando a temática espiritual –, alguns jumpscares – felizmente, não muitos, pois seu uso é artisticamente desprezível e cinematograficamente estúpido – e uma possessão demoníaca dentro do padrão (olhos virados, mandíbulas elásticas, poderes sobrenaturais, mortes cruéis e sussurros constantes). O erro do diretor foi justamente abraçar as convenções do terror relativo a esse tema, tornando-se uma obra genérica. Isto é, na parte mais sensível, quando o filme atinge o auge da paranormalidade que o espectador busca, o longa é um fosso de clichês.
O elenco não colabora muito, é verdade. O melhor ator do cast, Doug Jones (de “O Labirinto do Fauno” e “Hellboy”, ou seja, especializado em cinema fantástico), fica com um papel cuja relevância é meramente como engrenagem narrativa, aparecendo pouco (e amedrontando nada). Lulu Wilson acerta na “cara de paisagem” que lhe é exigida, mas a linguagem corporal é aquém do desejável – o cabelo não atrapalha para sentir algo estranho na nuca? Na parte dramática, todos são sofríveis.
Quanto ao roteiro… mesmo que “Ouija – Jogo dos Espíritos” seja engenhoso em seus plot twists aceitáveis no terceiro ato (e a elipse após o clímax é de uma coragem louvável), suas contradições são incômodas. A mãe está viúva, tenta ser zelosa e preocupada com as filhas. Nesse caso, como faz sua caçula faltar a tantas aulas (isso ignorando o fato de envolver as filhas no charlatanismo)? Uma das regras de Ouija é nunca jogar sozinho. Por que então isso acontece tantas vezes? Lina afirma que “se separar é algo idiota” no momento de enfrentar a entidade. Essa parte é de uma obviedade risível. O plot estabelece premissas que são quebradas por ele mesmo, perdendo completamente a credibilidade. Com isso, a narrativa perde fôlego.
Diante dos recursos de alto nível da direção, o elenco fraco e o roteiro falho poderiam ser relevados. Mike Flanagan poderia ter feito de “Ouija – Jogo dos Espíritos” um novo paradigma do gênero terror. Porém, ao ceder às obviedades e repetições das possessões demoníacas já tão exploradas pela sétima arte, não dá o salto de qualidade necessário para se destacar dentre tantos outros semelhantes. Quem sabe da próxima vez.