John le Carré já foi melhor adaptado para as telonas. Para quem não se encanta facilmente por filmes de espionagem (em especial aqueles sem muita ação), Stellan Skarsgård é o único motivo para assistir ao longa.
Na literatura, John le Carré é a referência contemporânea na seara da espionagem. Muitas das suas obras se transformaram em filme, normalmente com artistas renomados: “A Garota do Tambor” (Diane Keaton); “O Alfaiate do Panamá” (Pierce Brosnan); “O Jardineiro Fiel” (Ralph Fiennes); “O Espião que Sabia Demais” (Gary Oldman); e “O Homem Mais Procurado” (Philip Seymour Hoffman). Entretanto, o star system (escalação de estrelas no elenco) não funcionou com “Nosso Fiel Traidor”, despido da sagacidade apurada do britânico – ao menos no que se refere ao longa-metragem, objeto de análise (e não o livro, elogiado por quem leu).
Na trama, Perry (Ewan McGregor) e Gail (Naomie Harris) estão em um momento ruim do casamento, que não melhora em sua estadia em Marraquexe. Nos últimos dias do passeio, conhecem Dima (Stellan Skarsgård), sem saber que ele é o maior responsável pela lavagem de dinheiro da máfia russa (vory). Após explicar para Perry sua insatisfação com o vory, Dima pede a ele ajuda para levar informações ao Serviço Secreto Britânico, o que acaba inserindo o casal na espionagem internacional.
De realmente diferente, apenas a atuação de intelectuais (Perry é professor, Gail, Promotora) como espiões – ideia não original, mas que foge do lugar-comum dos espiões profissionais. Todo o resto da película representa um exemplar de bom nível do subgênero da espionagem, seguindo o seu script básico. O único momento de coragem de fazer diferente quase se deu no terceiro ato, que acena para uma insubordinação às convenções, todavia, o desfecho retrocede. Ou seja, é mais do mesmo – um “mesmo” até razoável, mas nada inovador.
Com efeito, trata-se de um plot ordinário, morno, sem grandes surpresas. Mesmo quando são acrescentadas novas camadas, como a gravidez da filha de Dima, há um completo abandono, provavelmente por receio de causar tumulto na narrativa principal. Outro exemplo é a cena em que o casal é levado para a casa de desconhecidos em Paris, esperando alguém (?) para alguma coisa (?). Subplots entram e saem com artificialidade, gerando cenas deslocadas na narrativa, que tornam a película mais longa, mas não mais profunda. No que é principal, há um didatismo incômodo por ser exagerado.
Por outro lado, é possível pescar subtextos inerentes ao argumento – mérito de le Carré. Quem é o “fiel traidor”? Pode uma autoridade parcial conduzir uma investigação, tendo motivos particulares para agir? A origem ilícita do dinheiro pode ser apagada quando ele beneficia pessoas inocentes? Extraem-se do roteiro questionamentos mais profundos, que, todavia, ficam apenas na menção. Isso porque as personagens não se apresentam com perfil reflexivo, preferindo a ação à reflexão.
Susanna White elabora planos burocráticos e de pouco significado. Logo no início, o abandono desnudo de Gail tem um simbolismo arrebatador, mas isso é exceção na película. O potencial dos cenários (Paris, Marraquexe, Berna) não é explorado, vez que White preferiu planos fechados para criar uma atmosfera intimista. O único acerto reside no ritmo narrativo, que consegue ser eficaz no suspense.
Como já afirmado, o star system não funcionou. Enquanto Ewan McGregor parece perdido (uma das piores atuações da sua carreira), Naomie Harris surpreende positivamente. No pouco espaço que consegue ocupar, a atriz se distancia do papel interpretado na franquia 007 (e os universos são claramente próximos), dando a entender que é um talento a ser descoberto (e não subaproveitado). Por sua vez, Stellan Skarsgård é um gigante: talvez o sueco seja um dos dez melhores europeus da atualidade. Sua interpretação de Dima é de uma entrega fenomenal, digna dos imortais. Porém, é no mínimo estranho um russo falando inglês (ainda que com sotaque) com seus conterrâneos. Nesse sentido, melhor seria a escalação de um ator russo para o papel de Dima – e o leste europeu está bem representado no longa (Pawel Szajda e Alec Utgoff, dentre outros). Não obstante, mais uma vez, Skarsgård está ótimo. É graças a ele, inclusive, que o espectador fica minimamente comovido com o arco dramático de Dima. Damian Lewis, por fim, não chama a atenção – positiva ou negativamente.
O que faz de “Nosso Fiel Traidor” um filme memorável? Absolutamente nada. É um filme aprazível? Sim, para quem gosta do subgênero da espionagem, em especial aquele de viés mais político, distinto da irracionalidade de um 007. Para quem não viu o filme nem leu o livro, porém, o texto escrito deve ser uma aposta mais segura para a satisfação.