A mistura de uma direção naturalista com adições de elementos surrealistas constrói uma história que nos faz sair da sessão com um sorriso de quem acabou de ouvir um segredo bom, mas que não pode contar a ninguém.
Kleber Mendonça Filho é um dos cineastas mais estranhos da atualidade. Existe algo em seu jeito de filmar, mais notadamente em “O Som ao Redor” (2012) e nesse seu novo filme, que consegue nos provocar uma angústia sem que, de fato, nada de exótico esteja sendo mostrado. É a estranheza da cena dos fantasmas dos meninos escravos pulando o muro sob o olhar aterrorizado de uma criança, ou do menino negro entre os galhos de uma árvore sendo ameaçado por seguranças particulares, ambos exemplos de seu filme anterior. Da mesma forma, em “Aquarius”, seu novo filme que estreou essa semana no Brasil, o cineasta mantém essa capacidade de transformar ações simples em cenas antagônicas, privilegiando a tensão da iminência de um desenrolar violento.
Mais do que muitos de seus contemporâneos, o diretor está embebido numa postura ideológica. Em nenhum momento, contudo, isso é encarado como problema. Pelo contrário, seus filmes são teses que discorrem sobre a posição de Kleber enquanto observador do mundo. Mais ainda, enquanto observador reflexivo de uma Recife em mudança, transformando-se pelas mãos dos empreendimentos imobiliários, ainda que sustente as bases do patrimonialismo escravagista de séculos anteriores.
O híbrido de contradições que forma seu contexto urbano é materializado nas relações pessoais que se desenrolam na tela. A interação de suas personagens são, portanto, interações (ou confrontos) de classe, gerações, gênero, posição social e etc. Não há neutralidade, tampouco parece haver falta de intencionalidade. Justamente por isso, “Aquarius” está envolvido numa polêmica que o atravessa, em última instância, pela conturbada atual situação política do país. Ao estrear no Festival de Cannes, em maio deste ano, seus atores e diretor carregaram placas que denunciavam “o golpe em curso no Brasil”. Agora, sendo lançado nas telas nacionais, o filme é protagonista de uma polêmica sobre a seleção de filmes nacionais que buscam representação no Oscar, motivando denúncias de alguns profissionais sobre um possível boicote a que ele estaria sendo vítima por suas posições políticas.
Tudo isso, porém, obscurece muito do valor cinematográfico dessa obra, que em muitos quesitos é um passo além de seu diretor em relação ao filme anterior. Diante da acentuação da crise nacional – cujos aspectos de ruptura Kleber já antevia lá em 2012 – e da posição política de seu realizador, é até curioso notar que ele tenha optado por subir um degrau de classe nos protagonistas representados. Ainda que “O Som ao Redor” retrate as elites patrimonialistas do nordeste, em “Aquarius” ele foca justamente aqueles que podem ser tidos como nossa versão de burguesia. Destituídos dos meios de produção, ainda assim são os que vivem na segurança de certa bonança econômica e acumulação de propriedades, permitindo-se certos privilégios no estilo de vida e culturais.
Clara (Sonia Braga) é uma escritora especializada em música, com cerca de 60 anos, última moradora do antigo edifício Aquarius, de frente à praia de Boa Viagem, na capital do Pernambuco. O prédio está na mira da construtora Bonfim, que planeja um grande empreendimento imobiliário no terreno, no estilo dos outros arranha-céus que preenchem aquela faixa litorânea. A moradora, contudo, é a única que recusa-se a vender o imóvel, marcado em cada canto, em cada móvel, por lembranças de experiências passadas. Seus antagonistas, portanto, farão de tudo para fazê-la vender a propriedade.
Assim, parece que a princípio esse será um filme marcado pela nostalgia ou pelo pessimismo sentimental que guia certos diretores dramáticos desde o começo do cinema. A tela poderia ser veículo de elocução constante de exemplos que reforçariam a tese de que no passado era melhor. Mas ainda que imbuído de certa postura nostálgica, Kléber afasta-se bem desse lugar comum com uma narrativa de memórias e sentimentos que conectam passado e presente sem, contudo, fazer um rasteiro julgamento de valor sobre ambos.
O filme começa trinta anos antes, num episódio específico, em que vemos Clara comemorando a cura de um câncer de mama. Mais do que só alegria, existe algo de fragmentação em seu olhar perdido de Elis Regina (a atriz que a interpreta jovem é muito parecida com a cantora) diante do discurso exageradamente feliz do marido. É aniversário de uma tia, que chega aos 70 anos e já é vista despossuída de aspectos inerentes de seu ser, como a sexualidade e as contradições. A aniversariante, então, olha para um gaveteiro disposto sem maior destaque entre os convidados da festa, e tal como Proust com suas madeleines, é transposta a lembranças passadas ali, sobre o móvel, de sexo selvagem dos tempos de juventude, com um homem de quem, logo sabemos, ela fora amante.
Esse tom que apresenta-se nos primeiros quinze minutos de filme é mantido ao longo de toda a história. Como dito de início, as estranhezas e onirismos de Mendonça Filho são manifestados em zoom ins ou panorâmicas inesperadas, quase descabidas, ou de elementos sobrenaturais, quase surreais de fato. É um filme de lembranças e pensamentos, mergulhado inteiramente na cabeça de sua protagonista irretocável.
A respeito dela, é fundamental falar do desempenho de Sonia Braga. Mais do que “um presente à atriz”, como dizem alguns críticos, o filme apresenta uma dedicação que ela não oferecia desde seus trabalhos mais pungentes, como “Gabriela” (1975) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1976). Isso mostra a importância de bons roteiros e boas direções diante de atores e atrizes competentes. Dotados de significações e intenções ricamente construídas, faz-se mágica de um tipo que só o cinema oferece.
Assim, para além da crítica à especulação imobiliária, que objetivamente tem destruído vidas e memórias, tal qual se dá na capital pernambucana, na região do porto de Estelita, ou no Rio de Janeiro, na região da Vila Olímpica, “Aquarius” é muito mais um filme sobre as memórias que carregamos. Não deixa de se criticar o “estilo classe média” (ou aqui, classe média alta) de vida, com problemas que são representados em sua pequeneza e embaraços que destacam o quanto de ridículo todos nós temos. Mais do que isso, porém, é que com um estilo de direção deveras simplificado, Mendonça Filho vem construindo o melhor cinema nacional da atualidade.