Novamente apontando sua lupa ao microcosmo da classe média brasileira, a premiada diretora agora debate percepções de gênero e fragmentação identitária.
Depois de “Que Horas Ela Volta?”, que muitos apostaram que conquistaria uma vaga no Oscar com reais chances de vitória, a diretora paulista Anna Muylaert tornou-se uma das que mais atraem atenção no cinema brasileiro. Seu mais novo filme, “Mãe Só Há Uma”, pode não ter uma protagonista tão icônica quanto a Val de Regina Casé, nem um roteiro tão recheado de falas memoráveis, mas consegue manter aceso o debate engajado que a autora se propõe, com a mesma atenção aos detalhes às atitudes cotidianas.
Pierre (Naomi Nero) é um adolescente de classe média baixa, desinteressado pela escola, músico de uma banda de garagem e que tem por hábito trancar-se no banheiro para experimentações de cross-dressing (uso de roupas e objetos socialmente constituídos como do sexo oposto). Órfão de pai, morando com a mãe e com a irmã mais nova, todo seu universo de significações desaba ao descobrir que fora, assim como a irmã, roubado da maternidade. Rapidamente ele se vê morando com outras pessoas, seus pais biológicos e um irmão mais novo, sendo chamado por outro nome, Felipe, e tendo seu estilo e preferências questionadas.
Ao invés de nos jogar numa jornada de transformação em que vemos o garoto se integrando à nova família a duras penas, ou carregar nas tintas dramáticas explorando a trama policialesca do sequestro de bebês (inspirado, entre outros, no icônico Caso Pedrinho dos anos 80), o roteiro de Muylaert oferece sangue novo com uma abordagem inventiva e um final pouco ortodoxo. A estrutura tradicional de enredo é mantida até o final do segundo ato, mas ao sair da sessão o gosto na boca é de quero mais.
Talvez tenha sido uma estratégia (bem pensada) para escapar dos clichês de uma história dramática na sua essência, talvez seja mesmo porque Muylaert tem se mostrado tão genial (uso essa palavra sem receio), que percebeu que o melhor caminho a seguir fosse pelas nuances das personagens, só possível tendo em mãos um elenco de fabulosos atores experientes e novatos.
Ao que me lembro, a última experiência tão bem sucedida com um elenco mirim/juvenil no cinema nacional fora de Laís Bodanzky em “As Melhores Coisas do Mundo” (2010). Aqui, desde o pequeno papel da irmã mais nova de Pierre até a dobradinha entre o protagonista e seu novo irmão (o excelente Daniel Botelho) são onde reside a essência da história.
Já a imanência é a noção de identidade. A jornada desse herói é mais do que a sua busca pela identidade, mas a afirmação de uma identidade fragmentada, tão própria de sua geração, com as novas percepções de gênero e a recusa de certos padrões de vida, quanto também particular de alguém em meio ao turbilhão psicológico de ser retirado de seu contexto e posto em outro do dia para a noite.
Dentro dos limites da estrutura fílmica, opta-se por focar apenas o drama de Pierre/Filipe, ainda que explorar as consequências para a irmã (Lais Dias), também enviada a sua família biológica, fosse uma opção igualmente fértil. Sabiamente, porém, seu sumiço no segundo terço da história adensa ainda mais os componentes da fragmentação da identidade do garoto, contribuindo na sutileza da cena final. Assim, Pierre torna-se uma figura destoante dentro de uma casa burguesa, diante de um pai (Matheus Nachtergaele, contido como nunca antes) que insiste em chama-lo de Felipe e uma nova mãe (Daniela Nefusi) que espelha sua mãe de criação, porém vazia do seu foco de afetos.
O escritor argentino Ricardo Piglia, em “Teses Sobre o Conto”, diz que o formato do conto é composto por dois níveis: o da história e o da história sob a história, essa segunda sendo como um “argumento simétrico que se conta em segredo” (p. 112), uma outra trama que aparece nas entrelinhas e sombras do enredo em destaque.
Em “Mãe Só Há Uma”, esse obscuro de significações manifesta-se inteiramente em Pierre/Felipe. Está condessado na estranheza natural que os adolescentes provocam, no cheiro que eles exalam e que podemos sentir mesmo através da tela, nas unhas pintadas, cabelos desgrenhados, atitudes blasés, enfim, na aparente apatia com relação ao mundo. Em cada sombra dessa história há um universo de subentendidos adornado por uma estética natural muito fiel ao conteúdo da vida média urbana brasileira. Atualmente, são poucos os filmes que conseguem se preencher dessa qualidade de conteúdo real sem cair num realismo acachapante. Kleber Mendonça Filho, de “O Som ao Redor” (2012), tem feito isso, adicionado ainda pitadas de simbolismo. Anna Muylaert também, do seu jeito muito particular.
Ainda que possam dizer que seu novo filme seja “menor” em relação ao anterior e que sua direção aparentemente simplória demonstre limitações, minha impressão é de que na dimensão narrativa e das escolhas cinematográficas, esse novo filme representa um passo além em sua carreira. Reparem na reiterada técnica que a diretora faz uso, utilizando o cenário como símbolo do distanciamento mental/emocional das personagens: em “Que Horas…?” isso havia sido feito por meio da luminosidade na parede numa cena entre Val e sua patroa; nesse novo filme é brilhantemente mostrado através das portas de um quarto, onde a câmera resta sozinha após uma briga entre Pierre e sua nova mãe, em que cada personagem parte para um cômodo diferente. Assim, vemos um universo de significações no subtexto da trama, sendo pensado em termos eminentemente fílmicos por essa diretora que, sem floreios ou pirotecnias, consegue ser assertiva e profunda.
Voltando à subtrama narrativa, o contraponto da fragmentação de Pierre/Felipe é seu irmão Joca, cujas cenas solo surgem como enxertos na narrativa principal e se constituem muito mais do que apenas uma subtrama. Sua rotina escolar, as paqueras da puberdade, o treino de judô e seus dramas sentimentais apontam uma outra forma de construção da identidade pela qual Pierre não pode mais passar. Certos estragos já foram feitos e são irremediáveis. Assim, no começa dessa relação, seja pela diferença de idade ou pelas biografias opostas, esses irmãos passam a habitar uma mesma casa, mas vivem em universos completamente distintos.
Assim temos o texto e o subtexto desse drama, que de algum modo constitui-se como um conto cinematográfico. Para vê-lo, porém, tem de se estar disposto à leitura. De um jeito diferente, pouco popular, mas bastante honesto e cheio de estilo, Muylaert vem dialogar com uma geração mais nova, reagindo ao que eles trazem e aparentemente tentando entender suas formas de racionalidade. Mostra-se vanguardista, portanto, deixando ainda mais evidente sua característica de querer sugar o tutano da vida brasileira.