O roteiro é camuflado como duas narrativas (aparentemente) singelas, porém, apresenta reflexões e críticas incisivas, embasadas no existencialismo de Nietzsche (teoria do eterno retorno). Tal inteligência é corroborada pela direção autoral elegante de Almodóvar. O resultado é sensacional.
O cineasta espanhol Pedro Almodóvar já chegou ao topo (como em “Tudo Sobre Minha Mãe”) e já dividiu opiniões (como com “A Pele que Habito”). Seu novo “Julieta” é mais um exemplo em que não há consenso do público e da crítica.
Boa parte disso se deve ao argumento aparentemente genérico, quiçá pouco atraente, que sustenta o longa. A protagonista Julieta é uma mulher de meia idade, prestes a se mudar para Portugal para acompanhar o namorado e lá começar uma nova vida, que, todavia, decide permanecer em Madri após encontrar uma amiga de infância da sua filha na rua. Se a ideia inicial era um recomeço, o que ela faz é o oposto: retorna a habitar um edifício onde já havia morado e escreve uma carta para a filha em que recorda episódios do seu passado.
O plot é bastante clean, sem um enredo de potencial cativante – ao menos prima facie. Ocorre, porém, que o roteiro é largamente enriquecido na evolução da narrativa, tanto pelos fatos apresentados quanto pelas simbologias, além do tecnicismo empregado por Almodóvar na direção e no roteiro. Quando Julieta inicia a carta, atua como narradora homodiegética, relatando o seu próprio passado para a sua filha, surgindo uma nova trama, com narração intradiegética. Isto é, o script trabalha com duas tramas de linhas temporais distintas (que, porém, estão na mesma obra e avançam concomitantemente), com a mesma protagonista, em momentos diversos das suas vidas (meia idade e jovem). Com isso, tem-se na película duas Julietas, cada qual com seu arco dramático: Emma Suárez é excelente ao interpretar uma Julieta (madura) calejada e melancólica, concedendo um quê de introspecção e tristeza que é contraposto à jovialidade vivaz que Adriana Ugarte garante à Julieta jovem, em atuação menos cativante. É com o andamento das tramas que suas personalidades se explicam. Aliás, Almodóvar pincela uma elipse simplesmente épica quando uma atriz é substituída pela outra através de uma toalha no rosto.
Nesse sentido, a direção autoral elegante do cineasta espanhol é um deleite cinematográfico. A presença das cores avermelhadas é constante como sempre (desta vez, já na primeira imagem, um plano-detalhe que se revela como uma roupa vermelha), acompanhando o longa até o final (paredes, assentos, carros, esmalte, bolo de aniversário, etc) – e o significado atribuído a cada elemento rubro é inegavelmente polissêmico. Almodóvar é um mestre da mise-en-scène: constrói cenas de um sexo que consegue ser, concomitantemente, carnal, romântico e delicado; sugere cigarro e álcool como aliados da depressão; e ainda atribui como leitura da protagonista o livro “La Tragedia Grega”, como um anúncio do porvir. Tudo que está em cada plano é cirurgicamente inserido para evitar excessos dispensáveis, ou seja, tudo tem a sua razão de estar lá (a cena em que Julieta assiste a uma partida de basquete numa quadra pública, por exemplo, só faz sentido em momento posterior). Para dar robustez, em especial nas cenas dramáticas e silenciosas, a película conta com uma trilha sonora quase que exclusivamente instrumental, remetendo à sonoridade do clássico “Vertigo”, de Hitchcock.
O roteiro de “Julieta” é também extremamente rico em significado, a depender da interpretação. Existem bases teóricas menores, como a moralidade questionável de algumas figuras masculinas (exceto o nobre Lorenzo, namorado da Julieta madura, vivido pelo convincente argentino Dario Grandinetti), um romance lésbico de fundo e a independência da mulher para trabalhar – nesse caso, a participação da ótima Rossy de Palma escancara o debate com uma personagem de humor heterodoxo. No entanto, residem no plot três pilares bastante densos. O primeiro e mais relevante refere-se às questões de arrependimento e culpa, inerentes à passionalidade humana – o clímax a esse respeito é como um soco no estômago, de tão dramático. O segundo e mais surpreendente é a instituição da fé como vilã (crítica ao fanatismo religioso). O pilar mais profundo se refere ao existencialismo de Nietzsche (um ateu) com sua (ainda que de inspiração estoica) teoria do eterno retorno, pela qual o ser humano se encontra numa espiral ético-diacrônica de reiteração de eventos. O eterno retorno de Nietzsche segue a ideia segundo a qual o ser humano não vive uma cronologia linear, mas uma repetição contínua de fatos e sentimentos, travestida de evolução temporal, que se complementam e compõem a história individual da vida de cada pessoa. A ideia de que tudo pode retornar como antes torna o indivíduo responsável pela sua conduta de maneira inafastável, e é essa lógica que dá amparo à narrativa de “Julieta” (inclusive na atribuição de culpa por eventos ruins).
O problema é que essa riqueza só pode ser enxergada numa análise obrada com esmero, pois Almodóvar camufla a erudição que embasa o roteiro em um plot aparentemente obsoleto. De todo modo, má qualidade não haveria ao unir a direção impecável do espanhol ao existencialismo de Nietzsche. Pode não ser o melhor filme de Almodóvar, mas é imensamente superior à maioria do que é visto nos cinemas hodiernamente. O resultado é sensacional.