Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de junho de 2016

A Garota do Livro (2015): uma experiência interessante, porém dolorosa

Diretora estreante conta uma história de traumas e abusos com simplicidade e delicadeza.

A adolescência é um dos períodos mais intensos na nossa vida. Devido a todas as mudanças pelas quais passam o corpo e a mente, tudo parece ser exagerado, todas as reações potencializadas. Desde as juras de amor e amizade eterna a longos períodos de tristeza e depressão. Por conta disso, muitas vezes, coisas realmente importantes e marcantes são subestimadas ou simplesmente não são levadas em consideração. Infelizmente, muitos podem levar as marcas e reflexos desses momentos consigo durante toda a vida. A diretora e roteirista estreante (em longa metragens) Marya Ruth Cohn conta uma história repleta desses elementos.

Em “A Garota do Livro”, Alice (Emily VanCamp) é alguém que passou por problemas em sua adolescência (aqui interpretada por Ana Mulvoy-Ten) e não teve seu pedido de ajuda atendido, ou sequer compreendido. Ela é, desde criança, uma jovem aspirante a escritora, que trabalha em uma importante editora de Nova Iorque. Enquanto luta para superar um terrível trauma de sua adolescência e com isso ser capaz de voltar a escrever, é surpreendida com a solicitação de Jack (Jordan Lage), seu chefe, de promover um evento que a coloca em contato com o renomado autor Milan Daneker (Michael Nyqvist), que não sabia que os dois possuíam um passado em comum.

O roteiro, repleto de flashbacks, cria uma atmosfera de tensão e ansiedade no espectador, pois a medida que algumas atitudes e reações de Alice parecem chocantes e questionáveis, do ponto de vista moral e ético, ficamos ávidos para que algo em seu passado justifique tais ações. Quando recebemos tais explicações, a ansiedade é substituída por aflição e até mesmo revolta, o que demonstra um promissor talento de Cohn, que tem a audiência nas mãos durante toda a projeção, tanto pelo excelente texto quanto pela forma como conduz a narrativa. Além disso, a trama é repleta de detalhes que contribuem para uma experiência ainda mais rica e elaborada, como a semelhança física de Jack com o pai da protagonista, a forma como o ele trata as suas companheiras ao longo da vida (e como isso se reflete nos próprios hábitos de Alice).

Outro elemento marcante, e aqui o mérito deve ser dividido entre a equipe de Fotografia, Figurino e Direção de Arte, é a composição visual. Se em sua adolescência Alice está sempre rodeada de cores femininas e pueris, como rosa e lilás, e banhada em uma calorosa luz amarelada, quando em sua fase adulta ela está sempre vestindo cores neutras, sem vida, como bege, marrom e branco.

Além de uma ótima condução da história, a diretora demonstra grande desenvoltura na orientação do elenco, sabendo tirar o máximo de cada ator em tela, ainda que nem sempre haja uma química aparentemente forte entre eles.

E o elenco completa uma produção que é tão certeira quanto modesta. Ali Ahn e David Call são coadjuvantes de luxo, carregando nas emoções que circundam Alice, nos papéis de melhor amiga e namorado. Michael Cristofer acerta com perfeição como o pai que se julga próximo e aberto para a filha, confundindo uma relação de amizade com a falta de atenção e disciplina necessárias naquela relação. Ana Mulvoy-Ten realiza um bom trabalho como a versão mais nova de Alice, sendo responsável pelos picos dramáticos da trama. Obviamente, os dois destaques são Michael Nyqvist e Emily VanCamp. Nyqvist esbanja habilidade ao transformar um canalha em alguém quase suportável, ao passo que VanCamp consegue construir todo o desenvolvimento de sua personagem de forma competente, apesar de deixar um pouco a desejar em algumas cenas que exigem uma carga dramática mais pesada. E é impossível não se encantar com sua “última cartada” para corrigir um dos seus maiores erros.

Uma vez que ainda estamos num tempo em que algumas pessoas acreditam que abusos de crianças e adolescentes são algo que pode ser relativizado, “A Garota do Livro” é, além de uma experiência complexa um interessante grito de alerta para esse tipo de situação.

David Arrais
@davidarrais

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